Há sujeira por baixo da sujeira: Uma entrevista com o artista brasileiro André Griffo

Heather Green

View Slideshow
Na primavera deste ano, conheci o artista André Griffo em uma residência no Virginia Center for the Creative Arts e fiquei impressionada com as telas grandes e intrincadas que ele estava trabalhando para sua próxima exposição individual na Galeria Nara Roesler em Nova Iorque com abertura marcada para 17 de outubro. Também fiquei intrigada com o uso de texto (em pinturas), o rico comentário político e a poesia (de André Capilé) em sua recente monografia, André Griffo. Realizamos esta entrevista por meio de documento compartilhado durante o verão de 2023.

—Heather Green, Editor Visual

Estou curiosa sobre seu processo de pesquisa. Alguns de seus trabalhos apresentam representações de espaços reais, alterados de maneiras que variam de sutis a drásticas, e outros trabalhos mostram montagens que você criou combinando vários locais, espaços imaginários e/ou outras obras de arte.  Você busca ativamente essas referências ou as captura quando elas lhe ocorrem? Além disso, seu trabalho às vezes parece colapsar o tempo, fazendo referência ao Brasil colonial e, ao mesmo tempo, falando sobre questões contemporâneas. Poderia descrever seu processo, desde a inspiração até o desenvolvimento das camadas pictóricas e conceituais da obra? 

O principal assunto da minha prática artística é religião e como ela vem sendo usada como ferramenta de controle através dos tempos. O campo de pesquisa é vastíssimo a ponto que na mesma pintura posso combinar imagens de afrescos bizantinos com pastores de igrejas Carismáticas do Brasil da atualidade.

As buscas por tais referências na maioria das vezes são pré determinadas, como por exemplo foi a minha pesquisa em 2018 no Hospital Santa Casa no Rio de Janeiro ou a pesquisa mais recente sobre o início do cristianismo em Roma e a produção de grandes mestres como Giotto, Fra Angélico e Piero Della Francesca. 

Uma pintura é iniciada a partir da potência de uma determinada referência, um espaço arquitetônico, um elemento decorativo ou uma pintura histórica e as narrativas são construídas através de sobreposições de imagens que podem resultar também em espaços imaginários ou modificados. O intuito desta combinação de imagens é comparar e confrontar estruturas sociais, as mudanças ou estagnações que tem a religião como fio condutor através dos tempos.

N.B. O hospital Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro é uma das instituições mais antigas do Brasil, cuja fundação remonta ao século XVI}.

Fiquei impressionada com a ressonância de sua pintura Instruções para Administração das Fazendas 2  quando li uma passagem do livro Crooked Plow (Arado Torto) do romancista brasileiro Itamar Vieira Junior (tradução Johnny Lorenz), que descrevia uma casa na Bahia de meados do século XX, que estava rachada e deteriorada, revelando “segredos fundamentais”. Você se importaria de falar um pouco sobre sua série Instruções para Administração das Fazendas e como os edifícios, as casas e sua decadência são considerados nesse trabalho, que aborda a história da escravidão no Brasil?

O que está descrito no livro do Itamar Vieira Júnior é o exato ponto onde a historia e a memória do Brasil entram em colapso. Muitas dessas fazendas, onde pessoas foram escravizadas, torturadas e mortas são hoje “paraísos” turisticos onde acontecem até representações teatrais bizarras da relação entre os senhores do engenho e seus escravizados. É onde a falta de consciência se mostra de maneira cruel, resultado de apagamento histórico de uma educação escolar fundamentada na visão branca europeia. A serie Instruções para Administração das Fazendas é a minha serie mais extensa e começou a partir de uma carta que está exposta no Museu afro Brasileiro cujo conteúdo é um inventario das relações sociais no Brasil. O teor misericordioso do escravagista aparece em qualquer relação que haja fricção entre classes nos Brasil, das relações trabalhistas às pessoais.

Em várias de suas pinturas, especialmente dessa série, e às vezes em um padrão de azulejos, há um detalhe de trabalhadores segurando uma árvore acima de um grande buraco ou vazio, como se pudessem plantá-la ali ou jogá-la lá. Poderia falar um pouco sobre essa imagem, sua origem ou ressonância para você?

Quando iniciei minha pratica artística em 2009, fotografei duas arvores de lugares diferentes, uma havia sido completamente podada e a outra estava sendo arrancada do solo e só tinha um pedaço de tronco. Quando fiz montagem dessas duas fotos não fazia ideia que viria a ser pintor, mas é uma referência que vem me acompanhando e apareceu somente nas pinturas. Para mim é um símbolo de uma paisagem de plantação, de extração, do que o Brasil foi enquanto colônia. Ela nunca aparece sozinha, os escravizados estão lá para apontar em que condições a sociedade brasileira emergiu e como isso ainda se mostra presente.  

Tree. Photograph courtesy of the artist.

Suas exposições (incluindo a atual), embora focadas em pintura, geralmente incluem instalações ou elementos de instalação. Por que alguns trabalhos são representados em um formato mais escultural ou tridimensional (incluindo até mesmo som, em pelo menos um caso), enquanto outros são realizados em tela?

É uma particularidade do meio, muitas vezes a pintura não é capaz de retratar totalmente uma ideia, mesmo quando ela também é usada para compor esses trabalhos instalativos.

Como é o caso da instalação A materialização do Canto da Mãe da Lua que realizei recentemente no museu Eva Klabin.

O título da obra faz uso do nome popular do Potoo, ave noturna típica da América do Sul. O pássaro possui um canto melancólico característico que está associado a diversos contos folclóricos, mais comumente entendido como um mau presságio. A instalação é composta pelo som do canto Potoo, dois retratos e uma seleção de objetos. Cada elemento enquadra-se na categoria de masculinidade ou feminilidade, apontando para a violência intrínseca da primeira versus a opressão da segunda, representando a estrutura patriarcal tradicional e as suas implicações para a sociedade e a política nacional.


Estou curioso sobre sua formação e experiência como arquiteto. Seus interiores, que às vezes mostram a fiação elétrica exposta na parede ou padrões intrincados de azulejos, revelam o olhar de alguém com consciência do que está por trás dos espaços e das formas como os espaços influenciam seus habitantes. Como sua formação influencia seu processo de pintura e em suas instalações?

A arquitetura foi um degrau para me tornar artista. A minha primeira experiência artística foi enquanto eu fazia estudos para revitalização de edifícios desocupados no Rio de Janeiro. Os vazios daqueles espaços em ruínas me fizeram pensar além do que compreende o oficio do arquiteto de projetar, construir e ocupar. Isso me levou a quase a anular a arquitetura no início da minha trajetória artística. Curioso fazer essa análise e constatar que a arquitetura foi reaparecendo nos meus trabalhos na medida em que me aprofundava na prática da pintura.

Estou intrigada com sua série chamada Anunciação Vazia, que "traduz" várias pinturas da Anunciação de Fra Angélico e outros em obras nas quais as figuras foram removidas dos cenários ou edifícios nos quais foram originalmente representadas, e os elementos arquitetônicos são mostrados separadamente. Essas pinturas parecem surgir da tensão entre as obras povoadas e não povoadas em sua obra. Você poderia falar um pouco sobre como elas surgiram e sobre seu próprio envolvimento com o retrato? Estou particularmente emocionada com uma série muito diferente, a assombrosa Olhos Distantes se Camuflam na Paisagem.

Interessante como essa pergunta se coordenou com a minha resposta anterior, porque o vazio e o silêncio das ruínas mencionadas são o que busco nas minhas pinturas. A série Anunciação Vazia é a apuração desta ideia do vazio onde os personagens são organizados como uma legenda, uma memória do que entendemos sobre aquela narrativa e que tem a arquitetura como veículo.

Ao contrário do que havia feito até o momento, em Olhos Distantes se Camuflam na Paisagem há uma figura humana como principal referência. De fato foi o início do meu interesse pelo retrato, onde o corpo é o assunto. O homem, mestiço, sentado de frente a uma azulejaria onde está representado um desenho, do século XIX, de Jean-Babtiste Debret. Tal desenho fora comissionado em comemoração à instauração da república no Brasil onde o conceito principal foi enaltecer a criação de um país mestiço e igualitário. A ideia foi confrontar esse documento histórico, republicano romântico,  com essa figura central, representação alegórica deste país mestiço, 200 anos depois.

Percebi várias linhas interconectadas de crítica política e social em suas obras, uma das quais é a crítica da religião como um modo de controle social. Em obras que se referem a pinturas de Giotto e Fra Angélico e também a igrejas e altares brasileiros, para citar alguns exemplos, você usa a própria iconografia religiosa para ironizar ou tornar visíveis as formas como a iconografia age sobre seus espectadores. No entanto, sua pintura é tão rica, detalhada e, às vezes, quase imaculada, que parece ir direto ao limite da glorificação da imagem, e então se transforma, às vezes em algo bastante violento. Você poderia falar um pouco sobre sua relação com os artistas aos quais faz referência e com sua ideia de beleza?

A minha relação com os artistas que pesquiso é de profunda admiração, mesmo que os temas por eles abordados sejam objetos de crítica. Há um exemplo atual sobre essa questão Artista x Assunto que vale citar como exemplo. Estou dedicando uma série que fala sobre Basílica di San Francesco em Arezzo onde o altar foi pintado por Piero della Francesca. Estar ali foi uma das minhas maiores experiências artísticas porém é estranho imaginar que aquela obra é fundamentada em uma narrativa que nem a igreja defende mais; que a conversão de Constantino ao cristianismo tenha acontecido após sonhar com uma cruz com dizeres “com esse sinal vencerás”, na noite anterior a uma batalha crucial. O fato histórico é que o então general Constantino legalizou os cultos cristãos como uma manobra politica, visto que precisava de apoio popular para se tornar imperador de Roma. Esse paradoxo entre a narrativa criada pela igreja e o fato histórico me interessa muito e é o tipo de conjuntura que gera assunto para muitos trabalhos. Posso dizer que é quando começa um tipo de cinismo da minha parte ao usar os mesmos artifícios estéticos que embasaram a ideia de beleza, sublime e divino para expor e confrontar valores construídos pela igreja.

A crítica à religião vai além de uma crítica ao imaginário católico e à consolidação do poder das novas forças evangélicas no Brasil com a política e as milícias locais, que incluem a polícia e controlam o acesso à água, ao gás e a outros bens básicos em algumas áreas de sua cidade, o Rio de Janeiro. Você pode falar um pouco sobre o desenvolvimento de sua série O Vendedor de Miniaturas? Como você começou a fazer essas figuras e a retratar seus vendedores, e que formas essas figuras assumiram até agora?

Em 2019 a minha produção estava muito voltada para temas históricos, porém o Brasil passava por um momento problemático que começou com o golpe parlamentar midiático que destituiu a Presidenta Dilma Roussef em 2016 e em 2018 a ascensão e eleição do presidente Jair Bolsonaro. Havia muita coisa acontecendo e (eu) precisava falar sobre aqueles assuntos nos meus trabalhos.

A série O Vendedor de miniaturas foi antecedida por dois trabalhos, A quem devo pagar minha indulgencia e Há Sujeira Embaixo da Sujeira, que faço criticas à politica de Bolsonaro, a sua aproximação com as Igrejas Evangélicas Carismáticas e o apoio dos militares a essa figura. Não por coincidência essa junção Politica-religiosa-militar é a base das Milícias no Rio de Janeiro, tipo de organização paralela que controla áreas de baixa renda através da imposição armada.

A série O vendedor de miniaturas aparece neste contexto, trata-se de um personagem ficticio que ocupa estacões de trem e metro para vender seus bonecos, personagens dos diferentes sistemas de poder que atuam sobre a cidade do Rio de Janeiro, pastores, policiais, políticos, traficantes e milicianos.

Há duas maneiras principais pelas quais percebo que o texto, ou as palavras, ganham vida nesse trabalho: Uma é nos títulos evocativos, como "voarei com as asas que os urubus me deram" (que aparece em uma pintura como grafite em uma janela) e na escrita que aparece nas pinturas, como sinalização em uma estação de metrô, latim ao redor da borda de uma pintura religiosa ou mensagens sinistras coladas em uma parede. Em primeiro lugar, estou curiosa para saber se seus títulos são anteriores às suas pinturas ou se geralmente vêm depois. E, em segundo lugar, você costuma inventar os grafites ou as placas de rua, ou eles geralmente estão lá, fortuitamente?

Prefiro começar uma pintura com o título definido mas já aconteceu de nomear meses depois de um trabalho finalizado. Além dos títulos a escrita aparece de outras formas, que vão de textos minúsculos e quase imperceptíveis às pixações, cartazes, papéis jogados no chão, letreiros, televisores, etc. Tem uma série chamada o Progresso do Regresso na qual reproduzo jornais de forma que é possível ler todo o conteúdo de uma matéria.

A frase que você mencionou “use sua arma em si, seu FDP” é uma critica a política de liberação do porte de armas para civis que o Bolsonaro tentou implantar no Brasil. Durante a campanha eleitoral de 2018 gerou-se uma retórica armamentista entre seus seguidores que simbolizavam seu apoio fazendo o gesto de um revólver com as mãos. Então usei o trabalho Sex and Death by Murder and Suicide, 1985 de Bruce Nauman como referência para subverter o uso dessa simbologia.

Parabéns pela sua recente monografia!  Este maravilhoso livro de arte apresenta a poesia do poeta e tradutor brasileiro André Capilé (em português e inglês), escrita em resposta ao seu trabalho. Como Asymptote é principalmente uma revista literária, gostaria de saber se você poderia falar um pouco sobre como surgiu essa colaboração.

Obrigado, foi uma enorme satisfação em apresentar esse livro pra você. A minha intenção, ao inserir poesias do André Capilé no livro, foi potencializar o caracter artístico da publicação, a diferenciando do formato engessado de um catálogo.

Conheci o Capilé quando éramos adolescentes em Barra Mansa, cidade do interior do estado do Rio de Janeiro. Traçamos caminhos distintos e nos reaproximamos pela admiração que um nutria pelo trabalho do outro. A importância de suas poesias foi tamanha que algumas pinturas em andamento naquele momento chegaram a ser influenciadas por suas poesias, caso da última pintura apresentada no livro Onde Anjos Bebados são Presos por Voarem com seus Demônios, que estava em processo e foi modificada para receber esse título que é parte de uma das poesias.

Where Drunk Angels Are Arrested for Flying With Their Demons, 2023, oil and acrylic on canvas, (177x252cm).

*

Trecho de “André Griffo,” by André Capile

chamar, a cada objeto que conjura,
o tanto póstero — de impermanente,
no acontecimento de seu estúdio

— o que a plateia silencia: a fresta
da noite iluminada que disseca
o tronco seco — a estrutura inviável.

há santos que propõem a dúvida
— nenhum foguete mostrará seus pés.

o pássaro na mão, a gaiola entreaberta:
pôr ou tirar, o que mais nos protege?

a mão que embala, serra o poste. Desarvora.


por seus espaços de claustro
o cálculo da lembrança

pelos rins da história
a difusão azuleja a fuligem


na estação das paredes
investiga as esquinas sem saída

onde estaciona seus motivos
sem descanso — pupilas afiam destroços



*

renuncia à renúncia, em seu anúncio
de eternidade em becos e calçadas


encharcadas de sangue, onde anjos bêbados
são presos por voar com seus demônios.