Paulo Scott on Graciliano Ramos
I.
Ano passado, quando estive por alguns dias de setembro viajando pela Alemanha por conta das leituras relacionadas ao lançamento do romance Habitante irreal naquele país, tive oportunidade de conversar com pessoas realmente interessadas em conhecer mais sobre o Brasil e, em especial, sobre a literatura brasileira destes dias. Naquelas conversas, tentando explicar o quadro geral da literatura brasileira contemporânea—especialmente do que vem sendo produzido nestas duas primeiras décadas do século XXI, a partir das obras e autores dos séculos XIX e XX que fizeram a literatura brasileira chegar aonde chegou, dentre nomes como os de Machado de Assis, Guimarães Rosa e outros—citei Graciliano Ramos. Fiquei surpreso ao descobrir que a quase totalidade dos meus interlocutores, diferente do que aconteceu quando referi Machado de Assis e Guimarães Rosa, nunca ouvira falar em Graciliano Ramos.
Se fizéssemos um inventário de qual escritor brasileiro da primeira metade do século XX—dentre os escritores cuja parcela mais relevante da obra se verificou na primeira metade do século XX—tem o trabalho que mais impacta e influencia o modo de escrever dos escritores brasileiros hoje em dia, não tenho dúvida que o nome de Graciliano Ramos apareceria em primeiro lugar. Sua presença é inegável nos livros de contemporâneos já consagrados e ainda em plena atividade, como, por exemplo, Lygia Fagundes Telles, Rubem Fonseca, João Gilberto Noll, Milton Hatoum, Sérgio Sant'Anna e Luiz Vilela; a influencia de Graciliano é também determinante na produção dos autores contemporâneos com menos de cinquenta anos que começaram a produzir na década de mil novecentos e noventa e nestas duas primeiras décadas do século XXI.
Há uma segurança estilística, um vigor narrativo, no que se produz hoje no Brasil que se deve muito a Graciliano Ramos, sujeito envolvido com a política (chegou a ser preso por quase um ano por razões políticas, o que levou a escrever o ótimo, apesar de inconcluso, Memórias do cárcere, publicado após seu falecimento) e também com as rotinas do jornalismo. Nascido em Alagoas, um dos estados mais pobres da região nordeste do Brasil, em mil oitocentos e noventa e dois, quando o Brasil ainda se resolvia na sua nova aparência republicana, Graciliano foi uma voz que se colocou de forma quase militante contra as injunções e privilégios típicos do poder exercido por certos grupos sociais no pai, ate inclusive dos quais fez parte., Graciliano faleceu em mil novecentos e cinquenta e três deixando uma obra que abrange romances, livros de contos, crônicas, memórias, literatura infanto-juvenil e também traduções, como a que realizou do livro A peste, de Albert Camus.
Seu primeiro romance, publicado em mil novecentos e trinta e três, foi Caétes (além do pequeno município do agreste pernambucano, o termo também designa "mata virgem" na língua indígena tupi e também a própria tribo dos Caetés que ocupou a região nordeste durante o período colonial), considerado por alguns críticos como experiência narrativa necessária para que o autor chegasse a seus romances posteriores de maior impacto, guardando relação estreita com o seu segundo romance, São Bernardo, publicado no ano seguinte, em mil novecentos e trinta e quatro. Em ambos Graciliano enfoca circunstância da vida privada para chegar a uma crítica social e política claramente direcionada às contradições da nova ordem política estabelecida no Brasil em mil novecentos e trinta e também às deficiências da república instaurada no país. Ambas obras evidenciam a fase de amadurecimento do autor, em particular o desenvolvimento da postura de Graciliano ante análise dos contextos relacionados à classe social que ele ocupava e à sua própria condição de brasileiro. Estes dois romances assumem singular importância quando se trata de refletir e afirmar a identidade brasileira e as suas idiossincrasias.
Oportuno também abordar o seu terceiro romance, Angústia, publicado em mil novecentos e trinta e seis, quando o autor ainda padecia na prisão a que foi submetido por retaliações do governo federal. Para mim esta obra segue sendo decisiva quando é preciso indicar na literatura brasileira um caso bem sucedido de romance que se constrói em torno de um protagonista problemático, de um herói problemático. O mesmo é verdade quando construo meus próprios personagens: pessoas que se encontram em situações-limite, nas quais a normalidade escapa por completo, os marginalizados que ocupam meus contos, meus romances e até meus poemas.
Para os que adoram diagnosticar um livro apenas pelo título, esse livro de mil novecentos e trinta e seis certamente será uma grande surpresa (ou decepção, dependendo de qual ângulo se encarar a mania de pré-julgar um trabalho pelo seu título), pois se trata de um romance de decorrências variadas. Angústia é contado por um narrador na primeira pessoa, um funcionário público solitário que acaba se encantando por uma vizinha; o ritmo é frenético (aqui também um aspecto de me agrada e influencia muito) e se sustenta por meio de um trágico monólogo interior. De traço existencialista, a novela toma um ato criminoso como clímax da narrativa, e expõe a odisseia do homem que luta para não se animalizar; o narrador chega a usar verbos que são próprios da existência dos animais para descrever reações humanas. Não é de graça que frequentemente Angústia é apontado pela crítica como a obra-prima do autor. Nesta novela Graciliano configura um labirinto singular, produzindo uma experiência que, pela falsa sujeira narrativa, arrebata o leitor ao decupar (usando aqui a linguagem do cinema) a lógica que leva alguém a matar: por razões ao mesmo tempo tão elementares e complexas.
II.
Não obstante a importância desses três romances que mencionei, e todos os outros trabalhos que integram a obra de Graciliano Ramos, é um romance de pouco mais de cem páginas publicado em mil novecentos e trinta e oito, intitulado Vidas secas. Vidas possui uma estrutura experimental (poderia facilmente ser apontado como uma coleção de contos em torno de um mesmo conflito existencial), e é o livro que maior impacto produziu na minha percepção de leitor. Obrigado a lê-lo aos treze anos de idade em razão de uma tarefa escolar valendo dez por cento da nota final do semestre, sou até hoje profundamente agradecido ao professor que passou a tarefa; diferente de muitos dos meus colegas, eu me sentia bastante confortável com as leituras obrigatórias de autores brasileiros a que éramos submetidos na escola.
O livro Vidas secas narra a história de uma família de retirantes tentando escapar dos estragos da seca no nordeste brasileiro: o pai, a mãe, o filho mais velho, o filho menor, e uma cadela chamada Baleia. Tido como um escritor arredio aos excessos do que se costuma chamar de prosa poética—valendo-se de um narrador na terceira pessoa que estabelece logo nas primeiras páginas um pacto com o leitor, convidando-o a reconhecer o mundo, a realidade do mundo, como o espaço de derrota—com essa obra Graciliano chega a um impressionante patamar de contenção e precisão narrativas. A seca, que é o próprio cenário do inferno, acaba se tornando o elemento onde a brutalidade do homem, a brutalidade que garantirá a sobrevivência imediata do homem, é algo demasiadamente distante da civilização e até da linguagem; é uma condição de escassez inclusive de definições e de clarezas.
Nesse contexto, no qual famílias pobres são condenadas a obedecer e a aceitar a violência dos seus senhores (seja o patrão dono da terra, seja o comerciante que não lhes entrega em qualidade o alto valor que lhes é cobrado, ou seja o governo e as diversas hierarquias funcionais do governo), como se os seus integrantes fossem de fato animais domados, a busca de uma saída, quando é quase impossível encontrar uma saída, acaba subsumindo o homem a gestos. Os protagonistas ocupam este mundo de gestos, tentando encontrar correspondência em palavra, em formulação de frase, em explicação remota que possa ser articulada pela fala que, quando bem articulada, não deixa de ser uma forma de libertação. Eles se equilibram entre a esperança de não se bestializar de maneira irrecuperável e a de não permitir que a possibilidade do futuro—justo por ser sonho—não lhes retire a última parcela de lucidez. A certa altura da história, o pai é preso e levado à cadeia simplesmente porque não sabe se explicar direito.
Mesmo admitindo sua brutalidade—sua condição próxima a de um escravo, resignando-se em relação a isso—o pai se inquieta diante da própria incapacidade de se impor, pois sabe que se impor pode lhe custar a vida, o futuro da mulher e dos filhos. Essa incapacidade de se autoemancipar é um traço relevante na caracterização da população brasileira que ocupa a faixa de pobreza próxima à miséria, mas também é um traço geral da população, especialmente quando se compreende que se consolidou ao longo da história, valendo até os dias de hoje. O entendimento de que uma população sem formação adequada, sem escolaridade, sem ser contemplada pelos direitos fundamentais, é mais fácil de governar, de manter sob a pirâmide da opressão que garante um país governável.
O quadro que Graciliano Ramos sugere e executa é assustadoramente atual, mesmo que as épocas de seca já não assumam a dimensão apocalíptica das primeiras décadas do século passado. A forma como as autoridades se agrupam em torno de conveniências econômicas específicas, sobretudo em regiões distantes das capitais, permanece atuante, impregnada, e se desloca para outras realidades—como a do assédio às terras indígenas, por exemplo—mas permanece lá, desumanizando tanto quanto antes, extinguindo qualquer possibilidade de liberdade republicana. Nesse ponto, e no seu viés temático, está a força do livro Vidas secas, mas não apenas nisso; há outras opções tomadas pelo autor que merecem atenção, uma delas é a que circunscreve a quinta integrante da família a protagonizar a história: a cadela chamada Baleia.
Sendo personagem animal cercada por personagens humanas animalizadas, a cadela interage no mesmo nível que eles, os humanos, na medida em que possibilita ao narrador invadir e realizar seus pensamentos, suas leituras e humores, a respeito do que está acontecendo com aqueles quatro que, mais do que seus donos, são a sua família. Importante observar que o romance se originou de um conto intitulado "Baleia", portanto não é à toa que o animal ganha a relevância que se evidencia na leitura. Há momentos em que Baleia toma os outros personagens como antagonistas circunstanciais, sobretudo a confusão e a ignorância do pai, atuando como o espelho e o julgamento do pai; é por meio do seu testemunho que se confirma a reificação daquelas pessoas que estão à margem do capitalismo brasileiro ainda por se constituir e se estabelecer naquele final da década de mil novecentos e trinta especialmente naquela região desolada, mas que produz os seus efeitos.
Em determinada passagem da história, o narrador dá notícia de que a cadela, que já havia devorado o papagaio da família (que seria o sexto integrante da família, se este não tivesse sido eliminado logo no início da narrativa), esboça a vontade súbita de devorar o filho mais velho—e, claro, não devora—tamanha é a fome pela qual ela, assim como os outros quatro, está passando. Em outra passagem, ela some e vai caçar um roedor, uma preá, para os quatro terem o que comer:
"Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinha Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensanguentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo.Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. E Fabiano queria viver. Olhou o céu com resolução. A nuvem tinha crescido, agora cobria o morro inteiro. Fabiano pisou com segurança, esquecendo as rachaduras' que lhe estragavam os dedos e os calcanhares.Sinha Vitória remexeu no baú, os meninos foram quebrar uma haste de alecrim para fazer um espeto. Baleia, o ouvido atento, o traseiro em repouso e as pernas da frente erguidas, vigiava, aguardando a parte que lhe iria tocar, provavelmente os ossos do bicho e talvez o couro."
A cadela os salva, os diverte, e os equilibra. A cadela está no mesmo patamar dos humanos que se valem mais dos gestos do que das palavras para se comunicar, e essa é uma opção decisiva. É uma solução que em momento algum ultrapassa a linha da verossimilhança; pelo contrário, penso que a cadela é a primeira peça, peça fabulosa, do núcleo dramático da história a despertar a empatia dos leitores.
A simplicidade da história, que se completa na passagem de uma realidade específica e concreta a outra realidade que possivelmente poderá ser melhor, talvez seja a chave da sua universalidade e da maneira como resiste à passagem das décadas, mantendo-se atual e interessante aos leitores. O Brasil que está no livro, talvez inspirando outras alegorias, outra mudez, outros ódios, ainda existe. É um país onde seres humanos se submetem aos mandos e desmandos regionais, sem conseguir compreender o que exatamente está acontecendo, admitindo um transcurso de vida sem direitos. Esta aceitação é similar a dos que são libertados de situações de escravidão e depois retornam, por sua própria vontade, ao mesmo regime de trabalho escravo do qual foram libertados.
Por fim, penso que merece destaque a relação entre marido e mulher, desdobrada entre momentos de aproximação e distanciamento, mas sempre transitando sob uma noção muito peculiar de companheirismo e resistência, tomando o próprio amor como escolha. Da convivência entre os dois, sobressai a capacidade da esposa em buscar entender os tempo dele, as limitações dele, e no momento necessário – percebendo a fragilidade do homem que não sabe o que fazer, mas resiste como pode – se colocar, resolver seus problemas.
Vidas secas é um romance que pode ser um ótimo primeiro passo aos que se interessarem por conhecer a obra de Graciliano Ramos. É impossível ler e situar os autores brasileiros contemporâneos sem prestar atenção nesse autor que, ao tratar de realidades tão severas, avançou em direção a uma narrativa enxuta e elegante que influencia até hoje o meu modo de escrever e, tenho certeza, a maioria dos escritores brasileiros que nestes dias vem ganhando espaço e leitores, não só no Brasil, mas no mundo inteiro.
Ano passado, quando estive por alguns dias de setembro viajando pela Alemanha por conta das leituras relacionadas ao lançamento do romance Habitante irreal naquele país, tive oportunidade de conversar com pessoas realmente interessadas em conhecer mais sobre o Brasil e, em especial, sobre a literatura brasileira destes dias. Naquelas conversas, tentando explicar o quadro geral da literatura brasileira contemporânea—especialmente do que vem sendo produzido nestas duas primeiras décadas do século XXI, a partir das obras e autores dos séculos XIX e XX que fizeram a literatura brasileira chegar aonde chegou, dentre nomes como os de Machado de Assis, Guimarães Rosa e outros—citei Graciliano Ramos. Fiquei surpreso ao descobrir que a quase totalidade dos meus interlocutores, diferente do que aconteceu quando referi Machado de Assis e Guimarães Rosa, nunca ouvira falar em Graciliano Ramos.
Se fizéssemos um inventário de qual escritor brasileiro da primeira metade do século XX—dentre os escritores cuja parcela mais relevante da obra se verificou na primeira metade do século XX—tem o trabalho que mais impacta e influencia o modo de escrever dos escritores brasileiros hoje em dia, não tenho dúvida que o nome de Graciliano Ramos apareceria em primeiro lugar. Sua presença é inegável nos livros de contemporâneos já consagrados e ainda em plena atividade, como, por exemplo, Lygia Fagundes Telles, Rubem Fonseca, João Gilberto Noll, Milton Hatoum, Sérgio Sant'Anna e Luiz Vilela; a influencia de Graciliano é também determinante na produção dos autores contemporâneos com menos de cinquenta anos que começaram a produzir na década de mil novecentos e noventa e nestas duas primeiras décadas do século XXI.
Há uma segurança estilística, um vigor narrativo, no que se produz hoje no Brasil que se deve muito a Graciliano Ramos, sujeito envolvido com a política (chegou a ser preso por quase um ano por razões políticas, o que levou a escrever o ótimo, apesar de inconcluso, Memórias do cárcere, publicado após seu falecimento) e também com as rotinas do jornalismo. Nascido em Alagoas, um dos estados mais pobres da região nordeste do Brasil, em mil oitocentos e noventa e dois, quando o Brasil ainda se resolvia na sua nova aparência republicana, Graciliano foi uma voz que se colocou de forma quase militante contra as injunções e privilégios típicos do poder exercido por certos grupos sociais no pai, ate inclusive dos quais fez parte., Graciliano faleceu em mil novecentos e cinquenta e três deixando uma obra que abrange romances, livros de contos, crônicas, memórias, literatura infanto-juvenil e também traduções, como a que realizou do livro A peste, de Albert Camus.
Seu primeiro romance, publicado em mil novecentos e trinta e três, foi Caétes (além do pequeno município do agreste pernambucano, o termo também designa "mata virgem" na língua indígena tupi e também a própria tribo dos Caetés que ocupou a região nordeste durante o período colonial), considerado por alguns críticos como experiência narrativa necessária para que o autor chegasse a seus romances posteriores de maior impacto, guardando relação estreita com o seu segundo romance, São Bernardo, publicado no ano seguinte, em mil novecentos e trinta e quatro. Em ambos Graciliano enfoca circunstância da vida privada para chegar a uma crítica social e política claramente direcionada às contradições da nova ordem política estabelecida no Brasil em mil novecentos e trinta e também às deficiências da república instaurada no país. Ambas obras evidenciam a fase de amadurecimento do autor, em particular o desenvolvimento da postura de Graciliano ante análise dos contextos relacionados à classe social que ele ocupava e à sua própria condição de brasileiro. Estes dois romances assumem singular importância quando se trata de refletir e afirmar a identidade brasileira e as suas idiossincrasias.
Oportuno também abordar o seu terceiro romance, Angústia, publicado em mil novecentos e trinta e seis, quando o autor ainda padecia na prisão a que foi submetido por retaliações do governo federal. Para mim esta obra segue sendo decisiva quando é preciso indicar na literatura brasileira um caso bem sucedido de romance que se constrói em torno de um protagonista problemático, de um herói problemático. O mesmo é verdade quando construo meus próprios personagens: pessoas que se encontram em situações-limite, nas quais a normalidade escapa por completo, os marginalizados que ocupam meus contos, meus romances e até meus poemas.
Para os que adoram diagnosticar um livro apenas pelo título, esse livro de mil novecentos e trinta e seis certamente será uma grande surpresa (ou decepção, dependendo de qual ângulo se encarar a mania de pré-julgar um trabalho pelo seu título), pois se trata de um romance de decorrências variadas. Angústia é contado por um narrador na primeira pessoa, um funcionário público solitário que acaba se encantando por uma vizinha; o ritmo é frenético (aqui também um aspecto de me agrada e influencia muito) e se sustenta por meio de um trágico monólogo interior. De traço existencialista, a novela toma um ato criminoso como clímax da narrativa, e expõe a odisseia do homem que luta para não se animalizar; o narrador chega a usar verbos que são próprios da existência dos animais para descrever reações humanas. Não é de graça que frequentemente Angústia é apontado pela crítica como a obra-prima do autor. Nesta novela Graciliano configura um labirinto singular, produzindo uma experiência que, pela falsa sujeira narrativa, arrebata o leitor ao decupar (usando aqui a linguagem do cinema) a lógica que leva alguém a matar: por razões ao mesmo tempo tão elementares e complexas.
II.
Não obstante a importância desses três romances que mencionei, e todos os outros trabalhos que integram a obra de Graciliano Ramos, é um romance de pouco mais de cem páginas publicado em mil novecentos e trinta e oito, intitulado Vidas secas. Vidas possui uma estrutura experimental (poderia facilmente ser apontado como uma coleção de contos em torno de um mesmo conflito existencial), e é o livro que maior impacto produziu na minha percepção de leitor. Obrigado a lê-lo aos treze anos de idade em razão de uma tarefa escolar valendo dez por cento da nota final do semestre, sou até hoje profundamente agradecido ao professor que passou a tarefa; diferente de muitos dos meus colegas, eu me sentia bastante confortável com as leituras obrigatórias de autores brasileiros a que éramos submetidos na escola.
O livro Vidas secas narra a história de uma família de retirantes tentando escapar dos estragos da seca no nordeste brasileiro: o pai, a mãe, o filho mais velho, o filho menor, e uma cadela chamada Baleia. Tido como um escritor arredio aos excessos do que se costuma chamar de prosa poética—valendo-se de um narrador na terceira pessoa que estabelece logo nas primeiras páginas um pacto com o leitor, convidando-o a reconhecer o mundo, a realidade do mundo, como o espaço de derrota—com essa obra Graciliano chega a um impressionante patamar de contenção e precisão narrativas. A seca, que é o próprio cenário do inferno, acaba se tornando o elemento onde a brutalidade do homem, a brutalidade que garantirá a sobrevivência imediata do homem, é algo demasiadamente distante da civilização e até da linguagem; é uma condição de escassez inclusive de definições e de clarezas.
Nesse contexto, no qual famílias pobres são condenadas a obedecer e a aceitar a violência dos seus senhores (seja o patrão dono da terra, seja o comerciante que não lhes entrega em qualidade o alto valor que lhes é cobrado, ou seja o governo e as diversas hierarquias funcionais do governo), como se os seus integrantes fossem de fato animais domados, a busca de uma saída, quando é quase impossível encontrar uma saída, acaba subsumindo o homem a gestos. Os protagonistas ocupam este mundo de gestos, tentando encontrar correspondência em palavra, em formulação de frase, em explicação remota que possa ser articulada pela fala que, quando bem articulada, não deixa de ser uma forma de libertação. Eles se equilibram entre a esperança de não se bestializar de maneira irrecuperável e a de não permitir que a possibilidade do futuro—justo por ser sonho—não lhes retire a última parcela de lucidez. A certa altura da história, o pai é preso e levado à cadeia simplesmente porque não sabe se explicar direito.
Mesmo admitindo sua brutalidade—sua condição próxima a de um escravo, resignando-se em relação a isso—o pai se inquieta diante da própria incapacidade de se impor, pois sabe que se impor pode lhe custar a vida, o futuro da mulher e dos filhos. Essa incapacidade de se autoemancipar é um traço relevante na caracterização da população brasileira que ocupa a faixa de pobreza próxima à miséria, mas também é um traço geral da população, especialmente quando se compreende que se consolidou ao longo da história, valendo até os dias de hoje. O entendimento de que uma população sem formação adequada, sem escolaridade, sem ser contemplada pelos direitos fundamentais, é mais fácil de governar, de manter sob a pirâmide da opressão que garante um país governável.
O quadro que Graciliano Ramos sugere e executa é assustadoramente atual, mesmo que as épocas de seca já não assumam a dimensão apocalíptica das primeiras décadas do século passado. A forma como as autoridades se agrupam em torno de conveniências econômicas específicas, sobretudo em regiões distantes das capitais, permanece atuante, impregnada, e se desloca para outras realidades—como a do assédio às terras indígenas, por exemplo—mas permanece lá, desumanizando tanto quanto antes, extinguindo qualquer possibilidade de liberdade republicana. Nesse ponto, e no seu viés temático, está a força do livro Vidas secas, mas não apenas nisso; há outras opções tomadas pelo autor que merecem atenção, uma delas é a que circunscreve a quinta integrante da família a protagonizar a história: a cadela chamada Baleia.
Sendo personagem animal cercada por personagens humanas animalizadas, a cadela interage no mesmo nível que eles, os humanos, na medida em que possibilita ao narrador invadir e realizar seus pensamentos, suas leituras e humores, a respeito do que está acontecendo com aqueles quatro que, mais do que seus donos, são a sua família. Importante observar que o romance se originou de um conto intitulado "Baleia", portanto não é à toa que o animal ganha a relevância que se evidencia na leitura. Há momentos em que Baleia toma os outros personagens como antagonistas circunstanciais, sobretudo a confusão e a ignorância do pai, atuando como o espelho e o julgamento do pai; é por meio do seu testemunho que se confirma a reificação daquelas pessoas que estão à margem do capitalismo brasileiro ainda por se constituir e se estabelecer naquele final da década de mil novecentos e trinta especialmente naquela região desolada, mas que produz os seus efeitos.
Em determinada passagem da história, o narrador dá notícia de que a cadela, que já havia devorado o papagaio da família (que seria o sexto integrante da família, se este não tivesse sido eliminado logo no início da narrativa), esboça a vontade súbita de devorar o filho mais velho—e, claro, não devora—tamanha é a fome pela qual ela, assim como os outros quatro, está passando. Em outra passagem, ela some e vai caçar um roedor, uma preá, para os quatro terem o que comer:
"Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinha Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensanguentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo.Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. E Fabiano queria viver. Olhou o céu com resolução. A nuvem tinha crescido, agora cobria o morro inteiro. Fabiano pisou com segurança, esquecendo as rachaduras' que lhe estragavam os dedos e os calcanhares.Sinha Vitória remexeu no baú, os meninos foram quebrar uma haste de alecrim para fazer um espeto. Baleia, o ouvido atento, o traseiro em repouso e as pernas da frente erguidas, vigiava, aguardando a parte que lhe iria tocar, provavelmente os ossos do bicho e talvez o couro."
A cadela os salva, os diverte, e os equilibra. A cadela está no mesmo patamar dos humanos que se valem mais dos gestos do que das palavras para se comunicar, e essa é uma opção decisiva. É uma solução que em momento algum ultrapassa a linha da verossimilhança; pelo contrário, penso que a cadela é a primeira peça, peça fabulosa, do núcleo dramático da história a despertar a empatia dos leitores.
A simplicidade da história, que se completa na passagem de uma realidade específica e concreta a outra realidade que possivelmente poderá ser melhor, talvez seja a chave da sua universalidade e da maneira como resiste à passagem das décadas, mantendo-se atual e interessante aos leitores. O Brasil que está no livro, talvez inspirando outras alegorias, outra mudez, outros ódios, ainda existe. É um país onde seres humanos se submetem aos mandos e desmandos regionais, sem conseguir compreender o que exatamente está acontecendo, admitindo um transcurso de vida sem direitos. Esta aceitação é similar a dos que são libertados de situações de escravidão e depois retornam, por sua própria vontade, ao mesmo regime de trabalho escravo do qual foram libertados.
Por fim, penso que merece destaque a relação entre marido e mulher, desdobrada entre momentos de aproximação e distanciamento, mas sempre transitando sob uma noção muito peculiar de companheirismo e resistência, tomando o próprio amor como escolha. Da convivência entre os dois, sobressai a capacidade da esposa em buscar entender os tempo dele, as limitações dele, e no momento necessário – percebendo a fragilidade do homem que não sabe o que fazer, mas resiste como pode – se colocar, resolver seus problemas.
Vidas secas é um romance que pode ser um ótimo primeiro passo aos que se interessarem por conhecer a obra de Graciliano Ramos. É impossível ler e situar os autores brasileiros contemporâneos sem prestar atenção nesse autor que, ao tratar de realidades tão severas, avançou em direção a uma narrativa enxuta e elegante que influencia até hoje o meu modo de escrever e, tenho certeza, a maioria dos escritores brasileiros que nestes dias vem ganhando espaço e leitores, não só no Brasil, mas no mundo inteiro.