Três Microficções

Cidinha da Silva

Photograph by Laura Blight

Dona Zezé

A velha benzia desde os 12 anos e estava à véspera dos 85. Sete, oito, nove, dez gerações foram cuidadas por seus gestos e palavras. Vento virado, cobreiro, mau olhado, espinhela caída, carne quebrada e outros males, tudo ela costurava.

Os sonhos sonhados por ela eram batata. Não errava. Um deles era de que viveria até os 75 anos. Preparou-se para morrer com essa idade, mas, pela primeira vez na vida, um de seus sonhos premonitórios falhou.

No aniversário de 76 anos, muito viva, concluiu que Deus tinha cometido um erro. Por algum motivo ele pulou seu nome na caderneta. Resolveu aproveitar o descuido celestial e ficou na miúda. Parou de benzer para que Deus não se lembrasse dela.




Mameto

Diziam que ali as paredes gemiam. Maldade da língua do povo, modo de falar mal do terreiro que tinha muita roçona. A começar pela Mameto, que roçava à vera e não escondia de ninguém, mas não colocava letreiro na testa.

Era aquele jeito de mulher mais antiga que não dá nome aos relacionamentos. Os filhos chamam a companheira de tia ou até mesmo de mãe. Elas dormem juntas em cama de casal e com a porta do quarto bem fechada. E ninguém fala no assunto.

Há alguns anos Mameto estava sozinha e naquela so- lidão de autoridade que ela cultivava ninguém se metia. No entanto, se alguém conseguisse chegar à outra margem daquele rio silencioso que era seu interior, atravessaria um caminho de pedras lisas e conchas pontudas difícil de firmar o pé. E conheceria uma mulher triste e ardente, muito além da mãe equilibrada que todos admiravam. Uma mulher consumida pelo desejo de amar e pela falta de coragem de se jogar.

Até que uma filha da casa apresentou-lhe a nova na- morada. Uma moça atenciosa, sorridente, que aqueceu o coração da Mameto com muito zelo e delicadezas, entre- tanto, desde o primeiro momento, deitou sobre ela aqueles olhos de caçadora que desconcertavam a velha senhora e a transformavam em presa.

Mameto se consumia em dúvidas e medos. A mulher que ela queria era a namorada da filha. Resistiu como pôde, mas a flecha acertou o coração da caça e escancarou a face abissal da paixão. Ainda que tenha sido tudo muito rápido, a filha percebeu, ficou magoada com a mãe e tensionou com a parceira. Acusou-a de interesseira. Ameaçou contar ao mundo suas ambições. Não adiantou.

Em pouco tempo formou-se um novo casal no terreiro, para escândalo geral. Mameto sorria, encantada. Cantava e ensaiava passos de dança de salão.

Como no poema, os dias mais felizes da vida brotavam como erva benfazeja. O céu ruborizou um abóbora ian- sânico no entardecer dos dias frios. Oxum ria um riso de menina arteira. Os orixás, em festa, criaram um mundo novo, sem aquele trabalho todo que fora carregar o saco da existência.

Só Exu, sábio e cético, trepado na árvore da vida, não se iludia. O trabalho apenas começava.




Maria Isabel

Já não aguentava aquele vai não vai. Eu querendo ir e a fa- mília insistindo para eu ficar. Meu coração, cretino, não me obedecia. E fui ficando, até que ele parou. Graças a Deus.

Maria Isabel veio se despedir de mim. Eu a vi menina, como vi as irmãs. Lembro que quando a mãe, Dona Nina, morreu, a Maria Isabel estava fechando os olhos dela, eu vi, ninguém me contou, e o pai da Mérdia perguntou se era verdade que a Isabel tinha estudado na gringa.

Não tinha compaixão, aquele espírito de porco.

As irmãs da Mérdia eram pessoas decentes, diferentes dela. Tinha a Marçulena, a Mirizante, a Mortuária e a Múr- cia. Sobre o registro delas, o juremeiro é quem fazia cha- cota, oficial de cartório só encrenca com nome de preto.

A Mérdia emprestava livros para a Maria Isabel, eram amigas, até que a Isabel passou no vestibular da universi- dade mais importante do estado. A Mérdia, que era vendedora numa lojinha, passou a dizer que não estudava porque não queria, que passar no vestibular não era tão difícil assim, afinal, a Maria Isabel tinha passado. Isabel, por sua vez, não era mais menina, já tinha perdido a ino- cência e compreendeu logo que aquilo era inveja branca.

Eu posso até dizer que o pessoal estava feliz no meu ve- lório. Aqui nesse pedaço do mundo a gente morre cedo, é difícil enterrar um velho de morte natural. Dona Ciça mesmo passou 2016 inteiro esperando o remédio da qui- mioterapia chegar no hospital.

Meus netos todos estão vivos, graças a Deus. Meus filhos também. Ninguém morreu antes de mim, é o certo, mas eu fui ao enterro de muito amigo deles.

A Dita está olhando a Maria Isabel de longe. Acho que está com medo de não ser reconhecida. Ela tem 52 anos e estudou com a Maria Isabel no grupo escolar, mas periga de parecer mais velha do que eu que já estou morto.

O sofrimento acaba com as pessoas.

Enterrou os dois filhos, a Dita. O Marlon, de 19, e o Denzel, de 12. O matador do Marlon teve notícia de que o Denzel estava pesquisando arma para comprar e achou mais seguro matar ele logo.

Maria Isabel parece que toma banho no formol. Tem 50 anos, mas ninguém dá mais do que 35, e vai ficando mais bonita com o tempo.

A vida que dá certo remoça.

Já está chegando a minha hora de fazer a viagem do fogo. Quis logo virar cinza porque não ia ter paciência de ver micróbio nenhum me comendo aos tiquinhos.

O pessoal diz que minha vez chegou na hora certa. Aqui no bairro todo mundo morre cedo.