Três poemas
Álvaro Fausto Taruma
Confessionário
Já não mais quero escrever poesia como certos anjos, é difícil esta vida de morrer assim pouco a pouco a noite toda, remendar a manhã com a restante saliva do sono neste país de devastação e sofrimento. Quero também a brisa das praias transparentes, um céu que trocasse as nuvens por algodão e um mar também azul atropelando-me as quilhas do coração. Beber café, decantar os livros? No more no more no more! Quero no amor outros domínios : uma mulher que não seja só carne e esquecimento, um copo de vinho brando da mais casta videira das palavras. Já não mais quero despertar assim com a alma toda pela boca.
Lisboa
Estou sentado em Lisboa a beber um copo num subúrbio qualquer de Maputo; é verão e sinto o frio de quem há muito se apartou da estação, ando, ando e ando e, nisso, por incrível, é minha cabeça quem chega mais longe que os próprios passos. Estou no mar navegando na solidão de um rio. As mãos tremem por dentro e os pulmões não respiram a graça do teu corpo matutino, suspendem-se sob uma frágil memória. Há um nome que se pronuncia no faiscar dos olhos; os corpos passam, os comboios passam, os ciganos passam, as aves é que não: estão presas no vidro aéreo de Lisboa, nos versos de Cesário estão presas as aves e a cidade inteira é um nome que não se desprende desta aluvião de visões. Estou em Lisboa e estou em lugar nenhum na geografia ardente do teu corpo.
[Sem título]
Move-se fugaz o rude animal nocturno, procura o equilíbrio perdido, sua vocação maternal, a integridade dura e concreta das pedras. Procura o seu espaço de afirmação, a substância felina, ferina, este trágico instinto que o faz engolir os filhos na incessante busca pela mutação perfeita. Oh, esta cidade condenou-me por tão pouco! Saio. Ergo-me ao dia e a manhã já é uma terrível desolação; tudo se esvai na pólvora do tempo. O cansaço monta tenda nas esquinas e as casas são uma imóvel melancolia inundadas de facturas de água e rostos tristes na televisão. As ruas repetem-se nos meus passos como palavras cruzadas, jogos perigosos, o puzzle dos nossos dias: polícias-ladrões-polícias, os anjos exactos rodam na mecânica dos automóveis. A céu aberto a morte segue lenta e vagarosa. Deus aqui é uma nota azul e compra-se num gospel centre aos domingos. Chegam-me ásperas as espinhas das palavras. Sou o rosto deste infame pescador que abandonou a metáfora, digo, a rede e perdeu o peixe veloz da alegria. Tudo está imensamente para além de mim; tudo demasiado para dentro como um aqueduto sombrio. Aqui o animal da sede nos devora, a cidade segue tranquila de óculos escuros.
Já não mais quero escrever poesia como certos anjos, é difícil esta vida de morrer assim pouco a pouco a noite toda, remendar a manhã com a restante saliva do sono neste país de devastação e sofrimento. Quero também a brisa das praias transparentes, um céu que trocasse as nuvens por algodão e um mar também azul atropelando-me as quilhas do coração. Beber café, decantar os livros? No more no more no more! Quero no amor outros domínios : uma mulher que não seja só carne e esquecimento, um copo de vinho brando da mais casta videira das palavras. Já não mais quero despertar assim com a alma toda pela boca.
Lisboa
Estou sentado em Lisboa a beber um copo num subúrbio qualquer de Maputo; é verão e sinto o frio de quem há muito se apartou da estação, ando, ando e ando e, nisso, por incrível, é minha cabeça quem chega mais longe que os próprios passos. Estou no mar navegando na solidão de um rio. As mãos tremem por dentro e os pulmões não respiram a graça do teu corpo matutino, suspendem-se sob uma frágil memória. Há um nome que se pronuncia no faiscar dos olhos; os corpos passam, os comboios passam, os ciganos passam, as aves é que não: estão presas no vidro aéreo de Lisboa, nos versos de Cesário estão presas as aves e a cidade inteira é um nome que não se desprende desta aluvião de visões. Estou em Lisboa e estou em lugar nenhum na geografia ardente do teu corpo.
[Sem título]
Move-se fugaz o rude animal nocturno, procura o equilíbrio perdido, sua vocação maternal, a integridade dura e concreta das pedras. Procura o seu espaço de afirmação, a substância felina, ferina, este trágico instinto que o faz engolir os filhos na incessante busca pela mutação perfeita. Oh, esta cidade condenou-me por tão pouco! Saio. Ergo-me ao dia e a manhã já é uma terrível desolação; tudo se esvai na pólvora do tempo. O cansaço monta tenda nas esquinas e as casas são uma imóvel melancolia inundadas de facturas de água e rostos tristes na televisão. As ruas repetem-se nos meus passos como palavras cruzadas, jogos perigosos, o puzzle dos nossos dias: polícias-ladrões-polícias, os anjos exactos rodam na mecânica dos automóveis. A céu aberto a morte segue lenta e vagarosa. Deus aqui é uma nota azul e compra-se num gospel centre aos domingos. Chegam-me ásperas as espinhas das palavras. Sou o rosto deste infame pescador que abandonou a metáfora, digo, a rede e perdeu o peixe veloz da alegria. Tudo está imensamente para além de mim; tudo demasiado para dentro como um aqueduto sombrio. Aqui o animal da sede nos devora, a cidade segue tranquila de óculos escuros.