Quatro Poemas

Paulo Leminski

até mais

Até tu, matéria bruta,
até tu, madeira, massa e músculo,
vodka, fígado e soluço,
luz de vela, papel, carvão e nuvem,
pedra, carne de abacate, água de chuva,
unha, montanha, ferro em brasa,
até vocês sentem saudade,
queimadura de primeiro grau,
vontade de voltar pra casa?

Argila, esponja, mármore, borracha,
cimento, aço, vidro, vapor, pano e cartilagem,
tinta, cinza, casca de ovo, grão de areia,
primeiro dia de outono, a palavra primavera,
número cinco, o tapa na cara, a rima rica,
a vida nova, a idade média, a força velha,
até tu, minha cara matéria,
lembra quando a gente era apenas uma ideia? 





vezes versus reveses

     um flash back
um flash back dentro de um flash back
     um flash back dentro de um flash back de
     um flash back
um flash back dentro de um terceiro flash back

     a memória cai dentro da memória
pedraflor na água lisa
     tudo cansa (flash back)
menos a lembrança da lembrança da lembrança
     da lembrança





aviso aos náufragos

Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio de Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.

Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida,
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.

Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta página, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da India,
vai ter que dizer bom-dia,
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não é assim que é a vida?





segundo consta

        O mundo acabando,
podem ficar tranquilos.
        Acaba voltando
tudo aquilo.

        Reconstruam tudo
segundo a planta dos meus versos.
        Vento, eu disse como.
Nuvem, eu disse quando.
        Sol, casa, rua,
reinos, ruínas, anos,
        disse como éramos.

        Amor, eu disse como.
E como será mesmo?