Quatro Poemas

Carlos de Assumpção

Batuque

Tenho um tambor
Tenho um tambor
Tenho um tambor

Tenho um tambor
Dentro do peito
Tenho um tambor

É todo enfeitado de fitas
Vermelhas pretas amarelas
e brancas

Tambor que bate
Batuque batuque bate
Tambor que bate
Batuque batuque bate
Que evoca bravuras dos
nossos avós

Tambor que bate
Batuque batuque bate
Tambor que bate
Batuque batuque bate
Tambor que bate
O toque de reunir
Todos os irmãos de todas as cores
sem distinção
Tenho um tambor
Tenho um tambor
Tenho um tambor
Tenho um tambor
Dentro do peito
Tenho um tambor

É todo enfeitado de fitas
Vermelhas pretas amarelas
brancas azuis e verdes

Tambor que bate
Batuque batuque bate
Tambor que bate
Batuque batuque bate
Tambor que bate
O toque de reunir todos
Os irmãos de todas as cores
Dispersos
Jogados em senzalas de dor
Tambor que bate
Batuque batuque bate
Tambor que bate
Batuque batuque bate
Tambor que fala de ódio e de amor
Tambor que bate sons curtos e longos
Tambor que bate
Batuque batuque bate
Tambor que bate
Batuque batuque bate
Tambor que bate
O toque de reunir
Todos os irmãos de todas as cores

Num quilombo
Num quilombo
Num quilombo

Tenho um tambor
Tenho um tambor
Tenho um tambor

Tenho um tambor
Dentro do peito
Tenho um tambor




Crime

De repente
Duma viatura
Saltam sobre mim
Vários policiais

Com cassetetes revólveres
Metralhadoras em punho
E com ódio
No olhar

Me cercam de repente
No meio da calçada
Num círculo de terror

Não me pedem documentos
Não me perguntam nada
Basta a minha cor.




Amanhecer
                           (ou Anoitecer)

Durante muito tempo
Andei à procura de mim mesmo
Pelos caminhos da dor
Durante muito tempo
Andei à procura de mim mesmo
Pelos caminhos da dor

Andei à procura de mim mesmo
Por entre os escombros
De minha vida solapada
À procura do meu orgulho
Curvado a chicotadas
À procura dos meus tambores
Dos meus tambores guerreiros e festivos
Silenciados de repente
À procura dos Deuses protetores
Que regiam os acontecimentos
Antes do cataclismo branco

Não foi inutilmente
Que andei à procura de mim mesmo
Pelos caminhos da dor
Não foi inutilmente
Que andei à procura de mim mesmo
Pelos caminhos da dor

Eis que me reencontro afinal

Meu orgulho
Meus tambores
Meus Deuses
Estão despertos
Estão despertos novamente
Novamente despertos
Estão nas ruas do meu sangue
Novamente




Meus Avós

à Profª. Eunice de Paula Cunha

Os meus avós foram fortes
Foram fortes os meus avós

Orgulho-me dos meus avós
Que outrora
Carregaram sobre as costas
A cruz da escravidão

Orgulho-me dos meus avós
Que outrora
Trabalharam sozinhos
Para que este país
Se tornasse tão grande
Tão grande como hoje é

Os meus avós foram fortes
Foram fortes os meus avós

Este país meus irmãos é fruto
Das sementes de sacrifício
Que os meus avós plantaram
No solo do passado
Há muitas histórias
Sobre os meus avós
Que a História não faz
Questão de contar

Os meus avós foram bravos
Foram bravos os meus avós

Embora ainda não conhecessem
A nova terra
A que tinham sido transportados
Acorrentados como se fossem feras
Nos sinistros navios-negreiros
Embora ainda não conhecessem
A nova terra
Os meus avós fugiam das fazendas
Cidades bandeiras e minas
E se embrenhavam nas florestas
Perseguidos por cães e capitães-do-mato

Há muitas histórias
Sobre os meus avós
Que a História não faz
Questão de contar

E a história
Dos que desesperados
Se atiravam dos navios
No abismo do oceano
E eram acalentados
Por Iemanjá

E a história
Dos que enlouquecidos
Gritavam em vão
Chamando a mãe África
Saudosos da África
Ansiosos para estreitar
De novo nos braços
A velha mãe África

E a história
Dos que morriam de banzo
Dos que se suicidavam
Dos que recusavam
Qualquer alimento
E embora ameaçados
Por troncos e chicotes
Não se alimentavam
E acabavam morrendo
Encontrando na morte afinal
A porta da liberdade

E as fugas em massa
Planejadas na noite das senzalas

E os feitores
Mortos nos eitos

E os senhores
Mortos nas casas grandes
E nas tocaias das estradas

Há muitas histórias
Sobre os meus avós
Que a História não faz
Questão de contar

Os meus avós foram bravos
Foram bravos os meus avós

Não me venham dizer
Que os meus avós se submeteram
Facilmente à escravidão

Não me venham dizer
Que os meus avós foram
Escravos submissos
Por favor não me venham dizer
Eu não aceito mentiras

Cortarei com a espada
Dos meus versos
A cabeça de todas as mentiras
Mal intencionadas
Com que pretendem humilhar-me
Destruir o meu orgulho
Falseando também
A história dos meus avós

Os meus avós foram bravos
Foram bravos os meus avós

Apesar dos “castigos
Públicos para exemplo”

Apesar de flagelados
Na carne e na alma

Apesar de divididos
E oprimidos
Pelo regime aviltante

Apesar de todas
As crueldades sofridas

Os meus avós nunca
Nunca se submeteram
À escravidão
Há muitas histórias
Sobre os meus avós
Que a História não faz
Questão de contar

Os meus avós foram fortes
Foram bravos
Foram bravos foram fortes
Os meus avós

A quem ainda duvide
Aponto entre outras epopeias
A epopeia dos Palmares
Cujos quilombolas chefiados
Pelo herói negro Zumbi
Acuados pelos inimigos
Muito mais bem armados
E muito mais numerosos
Esgotadas todas as forças
Apagadas as esperanças
Despenham-se da Serra da Barriga
Preferindo a morte gloriosa
À infame vida de escravos

A quem ainda duvide
Aponto as revoltas malês
Quando os bata-cotôs
(Tambores guerreiros)
Puseram em pânico
A cidade da Bahia
Aponto o quilombo de Jabaquara
Outro exemplo de bravura
Dos meus avós

A quem duvide
Aponto as sociedade negras secretas
Que angariavam fundos
Para comprar alforria
De irmãos escravizados

Há muitas histórias
Sobre os meus avós
Que a História não faz
Questão de contar

Meus avós foram fortes
Foram bravos
Foram bravos foram fortes
Os meus avós



Click here for poetry by Alberto Pucheu, translated from the Portuguese by Robert Smith, in our Fall 2019 issue.