de Monodrama
Carlito Azevedo
Dois estrangeiros
A) EFEITO LUPA
Quem diz luz
diz passagem do tempo
li isso no livro do filósofo
russo
sobre pintura
holandesa
e agora o repito
para mim mesmo
enquanto observo o
desabar da chuva
do lado de fora do
hotel onde trabalho
uma atividade espiritual
sem dúvida
Quem diz luz diz
esse baixar de pálpebras
que você revela
ao aparecer assim à minha frente
e o grande dramatismo
com que me relata a dificuldade de conseguir um taxi
embaralhando os contornos já bastante difusos
das tautologias sexuais
onde predominam
evidentemente
a forma da sua boca
o cheiro dos seus cabelos
Quem diz luz
diz o fundo do mar
o filósofo me previne contra
um rigor que nasce
da aplicação de ideias
esquemáticas e rígidas
em lugar de seguir os contornos
sinuosos e móveis da realidade
o post-it me lembra a obrigação de compor
um slogan para a nova marca de ketchup
num fim de semana
para aumentar a receita
e se uma nuvem de matéria
se chocasse
com outra
de antimatéria?
Você: por isso não existe amnésia
você: por isso o sol é uma tautologia
acordei com a voz do bandleader
dizendo: “Hiroito!”
Quem diz luz
diz algas diz cianobactérias
quem diz luz
diz impressão de espaço
diz: lago à noite
cintilando para ninguém
de um só lance meu olhar
abraça os olhos da alpinista triste
e diagnostica
pânico de check-in
seus pés já pisaram
mais lugares do que os meus
mas seu coração faz questão
de compartilhá-los comigo
pelo menos no meu sonho, senhor coelho,
no meu sonho de aniversário
Recordo mas calo
algo de Gombrowicz
sobre as nuvens invisíveis
ou sobre verões na estepe
longe daqui
enquanto olho para o relógio
alguém vai e vem
pela margem de um rio barrento
longe daqui
no mundo intermediário da rua da Carioca
alguém talvez gostasse de me ouvir
dizer que para ser visível
um corpo deve emitir
radioatividade
longe daqui
tenho amigos que me amam
e aos meus poemas
e pensam em mim todos os dias
Longe daqui
alguém leva desesperados numa chalana
alguém estuda as temperaturas
supercondutoras
alguém percebe que não
se tornou um génio do piano
deve haver alguém que chora
quando sua amiga lhe lê
um poema de
seu poeta preferido
os dois pedirão mais um café
e vão se despedir sob a marquise
congratulam-se pela decisão tomada
a sangue-frio de nunca se apaixonarem um pelo outro
ela corre um quarteirão até sua casa
sob a chuva
ele salta para dentro
de um ônibus lotado
até eu me emociono com as coisas
que estão ocorrendo
no dia do meu
aniversário
B) HER
“Essa luz, você sabe, eu detesto essa luz”
Eu guiava mas olhei para onde
Ela estava apontando
A enseada
A água cinza chumbo
O céu cheio de prismas
“Eu acho esse lugar tão horrível
E nem sei o que dizer
De toda essa gente perguntando
O tempo todo ‘o que você faz?’
‘Onde você mora?’
É tão obsceno isso
Logo vão querer saber também
Quanto eu ganho”
Em silencio pensei:
Pode acreditar!
Em vez disso
Perguntei se ela queria comer algo
Antes de subirmos a serra
“E também odeio o jeito como tratam
As crianças por aqui
Como se fosse obrigatório comprar
O amor delas
Não se esqueça disso quando
Começar a me detestar”
E sorriu
“Deus pelo menos eu tenho certeza que vai anotar tudo isso no meu liber vitae”
*
E quando na curva seguinte
Saltou da sombra fria da montanha
Uma névoa quase mágica
Abriu o vidro da janela e gritou-lhe:
“E não admito nenhuma mitigação entendeu bem senhor dos exércitos”
*
“Aquele carabiniere idiota
Pensava mesmo que ia me comer
E eu quase vomitando só de olhar para a cara dele
Obrigada por ter ficado ao meu lado todo o tempo
Você sabe
Seu país não é muito pior do que o meu
Só é mais estúpido e sentimental
Por isso odeio até as suas vozes”
*
Depois de pensar um pouco
E acender um cigarro
E ficar em silêncio:
“Chris costuma dizer que ser imigrante
Não é uma questão de distância
Por maior que seja
Mas algo que envolve
Uma fronteira
Olhar a morte de frente
E reconhecer seu poder”
Na África eu percebi uma imensa dignidade
Que não consigo ver aqui
Será a língua portuguesa avessa a isso?
Ou vocês viraram de fato
Um país imbecilmente rico?”
*
Num restaurante à beira da estrada
Afirmou que só voltaria aqui
Por mim
“E por Rafael”
Corrigiu rapidamente
“E por esse magnífico arroz de brócolis”
Disse depois de uma garfada
E sorriu
E já era uma segunda vez
A) EFEITO LUPA
Quem diz luz
diz passagem do tempo
li isso no livro do filósofo
russo
sobre pintura
holandesa
e agora o repito
para mim mesmo
enquanto observo o
desabar da chuva
do lado de fora do
hotel onde trabalho
uma atividade espiritual
sem dúvida
Quem diz luz diz
esse baixar de pálpebras
que você revela
ao aparecer assim à minha frente
e o grande dramatismo
com que me relata a dificuldade de conseguir um taxi
embaralhando os contornos já bastante difusos
das tautologias sexuais
onde predominam
evidentemente
a forma da sua boca
o cheiro dos seus cabelos
Quem diz luz
diz o fundo do mar
o filósofo me previne contra
um rigor que nasce
da aplicação de ideias
esquemáticas e rígidas
em lugar de seguir os contornos
sinuosos e móveis da realidade
o post-it me lembra a obrigação de compor
um slogan para a nova marca de ketchup
num fim de semana
para aumentar a receita
e se uma nuvem de matéria
se chocasse
com outra
de antimatéria?
Você: por isso não existe amnésia
você: por isso o sol é uma tautologia
acordei com a voz do bandleader
dizendo: “Hiroito!”
Quem diz luz
diz algas diz cianobactérias
quem diz luz
diz impressão de espaço
diz: lago à noite
cintilando para ninguém
de um só lance meu olhar
abraça os olhos da alpinista triste
e diagnostica
pânico de check-in
seus pés já pisaram
mais lugares do que os meus
mas seu coração faz questão
de compartilhá-los comigo
pelo menos no meu sonho, senhor coelho,
no meu sonho de aniversário
Recordo mas calo
algo de Gombrowicz
sobre as nuvens invisíveis
ou sobre verões na estepe
longe daqui
enquanto olho para o relógio
alguém vai e vem
pela margem de um rio barrento
longe daqui
no mundo intermediário da rua da Carioca
alguém talvez gostasse de me ouvir
dizer que para ser visível
um corpo deve emitir
radioatividade
longe daqui
tenho amigos que me amam
e aos meus poemas
e pensam em mim todos os dias
Longe daqui
alguém leva desesperados numa chalana
alguém estuda as temperaturas
supercondutoras
alguém percebe que não
se tornou um génio do piano
deve haver alguém que chora
quando sua amiga lhe lê
um poema de
seu poeta preferido
os dois pedirão mais um café
e vão se despedir sob a marquise
congratulam-se pela decisão tomada
a sangue-frio de nunca se apaixonarem um pelo outro
ela corre um quarteirão até sua casa
sob a chuva
ele salta para dentro
de um ônibus lotado
até eu me emociono com as coisas
que estão ocorrendo
no dia do meu
aniversário
B) HER
“Essa luz, você sabe, eu detesto essa luz”
Eu guiava mas olhei para onde
Ela estava apontando
A enseada
A água cinza chumbo
O céu cheio de prismas
“Eu acho esse lugar tão horrível
E nem sei o que dizer
De toda essa gente perguntando
O tempo todo ‘o que você faz?’
‘Onde você mora?’
É tão obsceno isso
Logo vão querer saber também
Quanto eu ganho”
Em silencio pensei:
Pode acreditar!
Em vez disso
Perguntei se ela queria comer algo
Antes de subirmos a serra
“E também odeio o jeito como tratam
As crianças por aqui
Como se fosse obrigatório comprar
O amor delas
Não se esqueça disso quando
Começar a me detestar”
E sorriu
“Deus pelo menos eu tenho certeza que vai anotar tudo isso no meu liber vitae”
*
E quando na curva seguinte
Saltou da sombra fria da montanha
Uma névoa quase mágica
Abriu o vidro da janela e gritou-lhe:
“E não admito nenhuma mitigação entendeu bem senhor dos exércitos”
*
“Aquele carabiniere idiota
Pensava mesmo que ia me comer
E eu quase vomitando só de olhar para a cara dele
Obrigada por ter ficado ao meu lado todo o tempo
Você sabe
Seu país não é muito pior do que o meu
Só é mais estúpido e sentimental
Por isso odeio até as suas vozes”
*
Depois de pensar um pouco
E acender um cigarro
E ficar em silêncio:
“Chris costuma dizer que ser imigrante
Não é uma questão de distância
Por maior que seja
Mas algo que envolve
Uma fronteira
Olhar a morte de frente
E reconhecer seu poder”
Na África eu percebi uma imensa dignidade
Que não consigo ver aqui
Será a língua portuguesa avessa a isso?
Ou vocês viraram de fato
Um país imbecilmente rico?”
*
Num restaurante à beira da estrada
Afirmou que só voltaria aqui
Por mim
“E por Rafael”
Corrigiu rapidamente
“E por esse magnífico arroz de brócolis”
Disse depois de uma garfada
E sorriu
E já era uma segunda vez