de O Guardador de Rebanhos
Alberto Caeiro
IV
Esta tarde a trovoada cahiu
Pelas encostas do céu abaixo
Como um pedregulho enorme . . .
Como alguem que d’uma janella alta
Sacode uma toalha de mesa,
E as migalhas, por cahirem todas juntas,
Fazem algum barulho ao cahir,
A chuva chiou do céu
E ennegreceu os caminhos . . .
Quando os relampagos sacudiam o ar
E abanavam o espaço
Como uma grande cabeça que diz que não,
Não sei porquê—eu não tinha medo—
Puz-me a querer rezar a Santa Barbara
Como se eu fosse a velha tia de alguém . . .
Ah, é que resando a Santa Barbara
Eu sentir-me-hia ainda mais simples
Do que julgo que sou . . .
Sentir-me-hia familiar e caseiro
E tendo passado a vida
Tranquillamente,ouvindo a chaleira,
E tendo parentas mais velhas que eu.
E fazendo isso como si florisses assim.
Sentia-me alguem que possa acreditar em Santa Barbara . . .
Ah, poder crer em Santa Barbara!
(Quem crê ha Santa Barbara,
Julgará que ella é gente e visível
Ou que julgará d’ella?)
(Que artificio! Que sabem
As flôres, as arvores, os rebanhos,
De Santa Barbara? . . . Um ramo de arvores,
Se pensasse, nunca podia
Construir santos nem anjos . . .
Poderia julgar que o sol
Allumia e que a trovoada
É um barulho repentino
Que principia com luz . . .
Ah, como os mais simples dos homens
São doentes e confusos e estupidos
Ao pé da clara simplicidade
E saúde em existir
Das arvores e das plantas!)
E eu, pensando em tudo isto,
Fiquei outra vez menos feliz . . .
Fiquei sombrio e adoecido e soturno
Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça
E nem sequér de noite chega . . .
IX
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a bocca.
Pensar uma flor é vel-a e cheiral-a
E comer um fructo é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gosal-o tanto.
E me deito ao comprido na herva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
XIII
Leve, leve, muito leve,
Um vento muito leve passa,
E vae-se, sempre muito leve.
E não sei o que penso
Nem procuro sabel-o.
XX
O Tejo é mais bello que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais bello que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia,
O Tejo tem grandes navios
E navega n’elle ainda,
Para aquelles que vêem em tudo o que lá não está,
A memoria das naus.
O Tejo desce de Hespanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde elle vae
E d’onde elle vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vae-se para o Mundo.
Para além do Tejo ha a America
E a fortuna d’aquelles que a encontram.
Ninguem nunca pensou no que ha para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada
Quem está ao pé d’elle está só alli.
XLIX
Metto-me para dentro, e fecho a janella.
Trazem o candeeiro e dão as boas-noites.
E a minha voz contente dá as boas-noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou claro de chuva,
Ou tempestuoso como se aqui acabasse o mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse da janella,
O ultimo olhar amigo dado ao socego das arvores,
E depois, fechada a janella, o candeeiro acceso,
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,
E lá fóra um grande silencio como um deus que dorme.
Esta tarde a trovoada cahiu
Pelas encostas do céu abaixo
Como um pedregulho enorme . . .
Como alguem que d’uma janella alta
Sacode uma toalha de mesa,
E as migalhas, por cahirem todas juntas,
Fazem algum barulho ao cahir,
A chuva chiou do céu
E ennegreceu os caminhos . . .
Quando os relampagos sacudiam o ar
E abanavam o espaço
Como uma grande cabeça que diz que não,
Não sei porquê—eu não tinha medo—
Puz-me a querer rezar a Santa Barbara
Como se eu fosse a velha tia de alguém . . .
Ah, é que resando a Santa Barbara
Eu sentir-me-hia ainda mais simples
Do que julgo que sou . . .
Sentir-me-hia familiar e caseiro
E tendo passado a vida
Tranquillamente,ouvindo a chaleira,
E tendo parentas mais velhas que eu.
E fazendo isso como si florisses assim.
Sentia-me alguem que possa acreditar em Santa Barbara . . .
Ah, poder crer em Santa Barbara!
(Quem crê ha Santa Barbara,
Julgará que ella é gente e visível
Ou que julgará d’ella?)
(Que artificio! Que sabem
As flôres, as arvores, os rebanhos,
De Santa Barbara? . . . Um ramo de arvores,
Se pensasse, nunca podia
Construir santos nem anjos . . .
Poderia julgar que o sol
Allumia e que a trovoada
É um barulho repentino
Que principia com luz . . .
Ah, como os mais simples dos homens
São doentes e confusos e estupidos
Ao pé da clara simplicidade
E saúde em existir
Das arvores e das plantas!)
E eu, pensando em tudo isto,
Fiquei outra vez menos feliz . . .
Fiquei sombrio e adoecido e soturno
Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça
E nem sequér de noite chega . . .
IX
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a bocca.
Pensar uma flor é vel-a e cheiral-a
E comer um fructo é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gosal-o tanto.
E me deito ao comprido na herva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
XIII
Leve, leve, muito leve,
Um vento muito leve passa,
E vae-se, sempre muito leve.
E não sei o que penso
Nem procuro sabel-o.
XX
O Tejo é mais bello que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais bello que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia,
O Tejo tem grandes navios
E navega n’elle ainda,
Para aquelles que vêem em tudo o que lá não está,
A memoria das naus.
O Tejo desce de Hespanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde elle vae
E d’onde elle vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vae-se para o Mundo.
Para além do Tejo ha a America
E a fortuna d’aquelles que a encontram.
Ninguem nunca pensou no que ha para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada
Quem está ao pé d’elle está só alli.
XLIX
Metto-me para dentro, e fecho a janella.
Trazem o candeeiro e dão as boas-noites.
E a minha voz contente dá as boas-noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou claro de chuva,
Ou tempestuoso como se aqui acabasse o mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse da janella,
O ultimo olhar amigo dado ao socego das arvores,
E depois, fechada a janella, o candeeiro acceso,
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito,
E lá fóra um grande silencio como um deus que dorme.
The five poems featured in this Summer 2020 issue are included in:
Alberto Caeiro. The Complete Works of Alberto Caeiro. Edited by Jerónimo Pizarro and Patricio Ferrari. Translated from the Portuguese by Margaret Jull Costa and Patricio Ferrari. New York: New Directions, 2020.
* The Portuguese spelling of these five poems follows the Portuguese critical edition published by Tinta da china in Portugal, edited by Jerónimo Pizarro and Patricio Ferrari.