de Cem dias entre céu e mar
Amyr Klink
7 Sete dias de tempestade
O Domingo terminou sem que pudesse tocar nos remos. Fiz uma tentativa de ir ao trabalho logo cedo, mas ondas desencontradas que vinham estourando de toda parte indicavam ser mais prudente passar o fim de semana em casa. Paciência. Poderia descansar um pouco e, quem sabe, começar a organizar a bagunça instalada nas sacolas e nos pequenos compartimentos do barco que ainda não tinham sido visitados.
Parecia difícil ter que permanecer o dia todo encerrado num espaço onde mal podia me sentar e onde a cada hora precisava abrir os respiros para permitir a entrada de ar; mas, estranhamente, eu me sentia bem ali.
Ainda que o mar parecesse uma pedreira em febril atividade, completamente cinza, com explosões sucessivas e britadeiras ensurdecedoras que não paravam, dessa vez o vento soprava firme, de su-sueste, e me jogava em direção favorável. Sabia que mesmo sem remar deveria avançar durante o mau tempo e, meio em dúvida, decidi pela primeira vez recolher a âncora de mar. Havia o risco de, sem ela, ser surpreendido por uma onda de lado e capotar, mas resolvi arriscar.
Balançando como um cabrito, o barco passou a deslizar com o temporal, sem se importar muito com as pancadas de ondas sobre o convés. Gostei da experiência, e durante a noite a âncora continuou guardada num compartimento externo, sob o carrinho de remar, que apelidei de “bodega 5”, em homenagem ao porão principal do Santiago del Estero.
A imagem das capotagens estava gravada no meu pensamento, e o medo de uma nova era grande. Deitado, não parava de calcular: se em três dias eu capotara três vezes, agora, após vinte e dois dias no mar, eu estava com um saldo devedor de dezenove capotagens que, às vezes, me tirava o sono. Porém, a sensação de progredir, ainda que acompanhado de uma tempestade, era deliciosa e, mesmo preocupado, adormeci.
De madrugada, ao tocar o despertador avisando que era hora do café, levantei-me com disposição de sair de imediato para o trabalho. Mas o tempo piorara bastante, e o vento, zunindo na anteninha de VHF que desesperadamente tentava permanecer em pé, me fez lembrar de umas páginas de La Fontaine que li quando garoto: a fábula “O carvalho e o junco”. O imponente carvalho, que jamais se curvava diante do vento, caçoava do frágil junco que, a cada lufada, deitava ao chão; até que, num dia de vento mais forte, o teimoso carvalho, não cedendo a uma força maior que a sua, tombou, arrancado do solo. E o junco, passado o vento, ergueu-se e continuou a crescer.
Não havia por que insistir em enfrentar a violência do mar. O barômetro, desde a véspera bastante baixo, continuava lentamente a descer e indicava que tão cedo as condições meteorológicas não melhorariam. Eu estava sendo ultrapassado por um centro de baixa pressão. Entendi que de nada adiantaria medir braços com algo maior que as minhas forças, e que, em vez de teimar com o tempo e correr o risco de quebrar o barco, deveria ser paciente e saber aguardar o momento certo de continuar em frente.
Negociando com o mau tempo, sem perder de vista meu objetivo, haveria de atravessar aquela situação. Assim, mais um dia deitado em meu compartimento de espera se anunciava. O que eu nunca poderia supor é que essa espera seria tão longa. Pois exatamente sete dias se passaram até que pudesse voltar a remar; sete dias em que fiquei trancado na cabine, sacudido por ondas enormes, flutuando em meio à espuma revolta do mar. Fechado. Sem poder sair. Simplesmente esperando. Ouvindo ondas que vinham arrebentando de longe sem saber se me alcançariam, ou sendo surpreendido por golpes de mar que à noite surgiam do nada. Situação de aspecto tenebroso, uma verdadeira tragédia!
Pois não foi. É engraçado, mas confesso que sinto saudades daquela semana. Pode parecer incrível, mas poucas vezes na minha vida fui tão feliz.
A angústia passou logo nos primeiros dias, e eu me convenci de que nem as piores tempestades fariam virar o barco. Ondas alcançando sete, às vezes oito metros, curtas e difíceis, revelavam um mar nitidamente mais agitado do que no triste dia das capotagens. Mas, com o peso mais bem distribuído e fazendo uso dos tanques de lastro interno, o comportamento do barco foi exemplar, e em nenhum momento tive que soltar as âncoras de mar para estabilizar a deriva.
Com a bolina totalmente recolhida e os lastros abastecidos com água salgada, descobri que dificilmente me encontraria de novo deitado no teto, vendo os peixes pela escotilha, como se estivesse num aquário de ponta-cabeça.
Não passei naqueles sete dias por um momento sequer de monotonia, tristeza ou desespero. Pois nada é mais certo do que a chegada do bom tempo após uma tempestade que parece interminável.
Pior, muito pior do que as escandalosas tempestades, eram os momentos de tensão e expectativa provocados por traiçoeiras calmarias, quando as águas quietas e o vento morto traziam consigo a certeza de mudanças no tempo e de mar agitado pela frente.
Na terça-feira daquela semana, 3 de julho, fiz um perfeito QSO com o Brasil, e minhas dúvidas se confirmaram. Tão cedo o mar não melhoraria. O Donald, PY1 E MM da Escola Naval do Rio de Janeiro, me passou uma previsão do tempo nada otimista: ventos de sudoeste a noroeste, de trinta a 35 nós, e uma frente fria localizada a 23° de latitude Sul, 8° de longitude Leste, ou seja, logo abaixo de onde eu estava, avançando justamente em minha direção.
Era engraçado receber uma previsão meteorológica se nada poderia fazer para evitar um temporal; mas o simples fato de saber o que se passaria nas próximas horas era fantasticamente tranquilizador.
Aproveitei o tempo livre para pôr a casa em ordem e, ocupado o dia todo com pequenas tarefas, não sentia as horas voarem. Em primeiro lugar, separei as roupas que estavam numa grande sacola. O meu estoque de roupas secas estava quase no fim e foi necessário poupar as que ainda não tinham sal. Coloquei numa sacola separada as roupas ainda “doces” que usaria, a partir de então, unicamente para dormir ou permanecer dentro da cabine. As “salgadas”, na medida do possível, seriam postas para secar, e, como o sal nunca permite uma secagem completa, só seriam usadas para trabalhar em dias molhados. Uma terceira sacola só conteria as roupas encharcadas, o macacão de mau tempo e o heroico casaco vermelho.
Tentei fabricar um travesseiro (único item, entre os meus equipamentos, que fora esquecido e talvez o que mais me fazia falta), mas sem muito sucesso, pois o balanço do barco era tão vio- lento que o peso da cabeça, em poucos minutos, achatava o mais fofo protótipo de travesseiro. Montei uma papelaria com lápis, canetas e material de navegação numa caixinha de papelão, alojada no compartimento do rádio. Instalei o escritório com documentos, dinheiro que sobrara da África, alguns cruzeiros obsoletos e todos os livros e tábuas de navegação. A sala de energia ficou sendo um cantinho atrás das baterias, onde guardei as pilhas, lanterna, lâmpadas e todo o material elétrico de reposição. Providenciei um centro de processamento de dados composto unicamente por duas calculadoras eletrônicas, indispensáveis para o cálculo rápido de minhas posições. A farmácia, por falta de uso, seria transferida para o compartimento de mantimentos, na proa, assim que o tempo permitisse. As panelas de reserva e outros objetos sem muito uso, que não sofreriam com a umidade, foram alojados no lado de fora, na “bodega 5”, que já estava cheia de água. Ali, bem no fundo, guardava uma âncora de ferro que fora usada antes da partida e que pretendia soltar na areia, um dia, ao tocar a costa brasileira. Junto estavam três arpões, 250 metros de cabos variados e mangueiras de reserva para os tanques. Não quis tirar a água que entrava pela junta da tampa de acesso, pois o seu peso, enquanto eu não voltasse a remar, ajudaria a estabilizar o barco.
Encontrei tempo para ler alguns trechos de Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, presente da Anne Marie, ao deixar Lüderitz. E, entre as minhas fitas prediletas de clássicos e MPB, descobri uma engraçadíssima gravação de “rock pauleira” alemão que tomou conta do gravadorzinho, normalmente adepto de músicas mais tranquilas. Sem que percebesse, minhas preferências musicais iam aos poucos seguindo o ritmo do mar, agitadas e barulhentas como naquele momento, ou tristes e silenciosas quando atravessava, pensativo, inquietantes calmarias.
Certa manhã, ainda trancado e sem perspectiva de melhora do tempo, percorrendo as frequências do meu receptor, sintonizei uma rádio brasileira e não me contive de alegria. Era um programa da Rádio Globo, do Rio de Janeiro, apresentado por Paulo Giovanni e dirigido às donas de casa, num estilo que eu desconhecia totalmente. Horóscopo, receitas culinárias, “histórias da vida”, conselhos sobre maridos que dormiam fora de casa. Nossa, como eu me diverti! Pela primeira vez eu ouvia notícias em português. Ofertas de supermercados na Baixada Fluminense, problemas de trânsito no centro do Rio; sentia-me terrivelmente ligado ao Brasil. Anotei a frequência na parede branca da cabine: 11805 kHz. E passei a acompanhar diariamente o engraçado programa. Pouco durava a minha emoção, pois antes das nove horas, de Brasília, a propagação começava a baixar e, então, eu desligava o rádio.
Sexto dia fechado, e ainda nada. Impressionante como o tempo passa rápido. Eu entrava no vigésimo sexto dia de viagem e agora o cardápio sofria uma pequena modificação. Comecei a caprichar mais na cozinha e percebi que podia preparar pratos novos, com requintados temperos. Comer passou a ser a atividade mais interessante a bordo.
Há muito tempo me interessava pelo problema de alimentação no mar e observei, ao estudar as viagens de outros navegadores, que pouca atenção se dá à parte de nutrição. Em todos os relatos que li sobre longas permanências no mar eram frequentes os distúrbios digestivos, a dificuldade de cicatrização de ferimentos, os furúnculos e problemas de pele, e a falta de resistência física.
Quando falei com D’Aboville, em Paris, sobre sua travessia do Atlântico Norte, ele me confessou que o mais grave problema que enfrentou, e que, em pleno oceano, quase o obrigou a desistir de continuar, não foram tempestades ou tubarões, mas uma simples e terrível constipação dos intestinos. Ouvindo os detalhes sobre a penosa operação de lavagem intestinal a que foi obrigado a se submeter, decidi que em hipótese alguma passaria pelo mesmo calvário. Por que não desenvolver um programa de alimentação corretamente balanceado e adaptado à vida no mar?
Conheci, por intermédio do Rob, meu fiel colaborador durante a fase de preparativos, uma nutricionista, Flora Lys Spolidoro, que não se assustou nem riu do plano que eu tinha em mente. Apaixonante e, acima de tudo, competente, a Flora. Convenceu a diretoria da firma onde trabalhava, a Nutrimental, do interesse científico da ideia e, coordenando um grupo de nutricionistas, desenvolveu e executou um projeto completo de alimentação simplesmente impecável.
Sete mulheres maravilhosas que, após oito meses de pesquisa e trabalho, me agarraram pelo estômago.
Minha alimentação, à base de desidratados, atendia a uma série de pré-requisitos como: conservação em condições extremas de temperatura e umidade, baixo volume e peso, balanceamento perfeito, facilidade de preparo, e, sobretudo, consistência, aspecto e sabor iguais aos da comida caseira. Estava acondicionada em embalagens individuais numeradas de l a 119 por ordem de consumo, de modo a não alterar o balanceamento, que continham uma média de 4 200 calorias por dia. Se, em determinado dia, eu não tivesse fome, descartaria o cardápio desse dia, para retomar, no dia seguinte, a numeração correspondente. O mesmo cardápio só se repetiria a cada duas semanas e, desse modo, seria praticamente impossível torná-lo monótono ou consumi-lo sem apetite.
Mas o grande segredo do projeto era que, por uma questão logística, eu só cozinharia com água do mar, poupando o meu reduzido estoque de água potável e economizando um peso desnecessário — a água para cozinhar. Para isso, todos os alimentos foram desidratados sem sal e combinados de modo a anular o excesso de salinidade no preparo. O sucesso foi total.
Os primeiros 25 cardápios eram de preparo mais rápido e continham um pouco mais de calorias que os 94 normais, pois a Flora calculou que o começo da viagem seria difícil. Havia ainda cardápios específicos para diarreia, para emergência (que dispensavam o fogareiro) e ainda de sobrevivência, esses de consistência concentrada e à base de liofilizados, totalizando 150 dias de alimentação. Ao passar para o número 26, já nos cardápios normais, mais experiente no fogão, eu conseguia verdadeiras proezas culinárias, acompanhadas de exuberantes sobremesas que, tristemente, terminavam na dura obrigação de lavar panela e pratos.
Pois foi tentando lavar a minúscula panela de pressão, sem sair da cabine, que senti um violento raspão no fundo do barco. A pele áspera de um tubarão que se esfregava embaixo, fazendo um assustador barulho de lixa. As “visitas” estavam de volta e dessa vez me presentearam com uma hora de tensa companhia. As ondas batendo por cima, os tubarões lixando por baixo, consolei-me, pensando que pelo menos eles colaboravam com a limpeza do fundo. A parte submersa do casco estava pintada com uma tinta especial, antiincrustante, que evita a formação de cracas mas não impede o acúmulo de limo. Desde a partida, ainda não fizera nenhuma inspeção no fundo, e decidi que, com o tempo bom, e assim que as “visitas” parassem de “ajudar”, deveria mergulhar e verificar como se comportava a tinta especial.
Não havia nada a fazer além de adaptar-me a essa vida provisória, aguardando que o tempo melhorasse. Depois de tantos dias deitado, estava descansado e morria de saudades dos remos, eles também por uma semana deitados e amarrados no convés.
Finalmente, no oitavo dia o céu clareou e o mar ameaçou acalmar-se. Era um domingo, comemorava a quarta semana no mar, e remei por sete horas apesar de as ondas ainda se mostrarem um pouco nervosas.
No dia seguinte, com o céu limpo e horizonte definido, após cuidadosamente limpar e regular o sextante, pude observar o sol na passagem meridiana. Com as observações astronômicas da tarde, cruzando uma segunda reta de altura em ângulo, teria enfim a posição. Perdera por completo o controle de direção do barco, e não sabia onde estava. Progredira em latitude, não havia dúvida, mas em que direção? Para o norte, rumo à África, ou para Santa Helena, como pretendia? Tudo era possível, depois de tanto tempo, e, graças ao sol, eu teria a resposta.
Entrei para a cabine com as alturas observadas anotadas no meu caderninho de navegação, e coloquei os dados na calculadora eletrônica. Estava nervoso, ansioso para saber o resultado. E, no momento de pressionar a última tecla, ao tocá-la levemente como quem chora uma carta de baralho num jogo decisivo, segurei o dedo na expectativa de ver a diferença entre a posição calculada e a estimada. Se fosse positiva essa diferença, eu teria progredido. Se fosse negativa, eu estava frito. Fui apertando a teclinha devagar e . . . viva! Saiu um resultado positivo, muito melhor do que podia esperar. Estava a mais de quatrocentas milhas da costa africana mais próxima! Eufórico e feliz, saltei para fora, e, desafiando o horizonte, dei um longo grito de alegria. “Estou conseguindo!”, berrava. “Estou chegando lá! Santa Helena, prepare-se!”
Só os tubarões ouviram.
Faltavam mais de 3 mil milhas até o Brasil, mas agora tinha certeza de que estava a caminho. Nada mais me ligava à África. Ou quase.
Pendurado na alavanca interna da bomba de água, junto à minha cama, balançava um pedaço de carne de órix defumada, presente do Günther e que eu guardava para comer em alguma ocasião especial. Olhei para a carne e achei, não sei por que razão, que deveria devolvê-la ao mar. Jogueia na água, como se fosse uma oferenda devolvida. E, a partir desse instante, o mar acalmou-se e o tempo melhorou. Superstições à parte, tenho certeza de que a carne de órix foi bem recebida.
O Domingo terminou sem que pudesse tocar nos remos. Fiz uma tentativa de ir ao trabalho logo cedo, mas ondas desencontradas que vinham estourando de toda parte indicavam ser mais prudente passar o fim de semana em casa. Paciência. Poderia descansar um pouco e, quem sabe, começar a organizar a bagunça instalada nas sacolas e nos pequenos compartimentos do barco que ainda não tinham sido visitados.
Parecia difícil ter que permanecer o dia todo encerrado num espaço onde mal podia me sentar e onde a cada hora precisava abrir os respiros para permitir a entrada de ar; mas, estranhamente, eu me sentia bem ali.
Ainda que o mar parecesse uma pedreira em febril atividade, completamente cinza, com explosões sucessivas e britadeiras ensurdecedoras que não paravam, dessa vez o vento soprava firme, de su-sueste, e me jogava em direção favorável. Sabia que mesmo sem remar deveria avançar durante o mau tempo e, meio em dúvida, decidi pela primeira vez recolher a âncora de mar. Havia o risco de, sem ela, ser surpreendido por uma onda de lado e capotar, mas resolvi arriscar.
Balançando como um cabrito, o barco passou a deslizar com o temporal, sem se importar muito com as pancadas de ondas sobre o convés. Gostei da experiência, e durante a noite a âncora continuou guardada num compartimento externo, sob o carrinho de remar, que apelidei de “bodega 5”, em homenagem ao porão principal do Santiago del Estero.
A imagem das capotagens estava gravada no meu pensamento, e o medo de uma nova era grande. Deitado, não parava de calcular: se em três dias eu capotara três vezes, agora, após vinte e dois dias no mar, eu estava com um saldo devedor de dezenove capotagens que, às vezes, me tirava o sono. Porém, a sensação de progredir, ainda que acompanhado de uma tempestade, era deliciosa e, mesmo preocupado, adormeci.
De madrugada, ao tocar o despertador avisando que era hora do café, levantei-me com disposição de sair de imediato para o trabalho. Mas o tempo piorara bastante, e o vento, zunindo na anteninha de VHF que desesperadamente tentava permanecer em pé, me fez lembrar de umas páginas de La Fontaine que li quando garoto: a fábula “O carvalho e o junco”. O imponente carvalho, que jamais se curvava diante do vento, caçoava do frágil junco que, a cada lufada, deitava ao chão; até que, num dia de vento mais forte, o teimoso carvalho, não cedendo a uma força maior que a sua, tombou, arrancado do solo. E o junco, passado o vento, ergueu-se e continuou a crescer.
Não havia por que insistir em enfrentar a violência do mar. O barômetro, desde a véspera bastante baixo, continuava lentamente a descer e indicava que tão cedo as condições meteorológicas não melhorariam. Eu estava sendo ultrapassado por um centro de baixa pressão. Entendi que de nada adiantaria medir braços com algo maior que as minhas forças, e que, em vez de teimar com o tempo e correr o risco de quebrar o barco, deveria ser paciente e saber aguardar o momento certo de continuar em frente.
Negociando com o mau tempo, sem perder de vista meu objetivo, haveria de atravessar aquela situação. Assim, mais um dia deitado em meu compartimento de espera se anunciava. O que eu nunca poderia supor é que essa espera seria tão longa. Pois exatamente sete dias se passaram até que pudesse voltar a remar; sete dias em que fiquei trancado na cabine, sacudido por ondas enormes, flutuando em meio à espuma revolta do mar. Fechado. Sem poder sair. Simplesmente esperando. Ouvindo ondas que vinham arrebentando de longe sem saber se me alcançariam, ou sendo surpreendido por golpes de mar que à noite surgiam do nada. Situação de aspecto tenebroso, uma verdadeira tragédia!
Pois não foi. É engraçado, mas confesso que sinto saudades daquela semana. Pode parecer incrível, mas poucas vezes na minha vida fui tão feliz.
A angústia passou logo nos primeiros dias, e eu me convenci de que nem as piores tempestades fariam virar o barco. Ondas alcançando sete, às vezes oito metros, curtas e difíceis, revelavam um mar nitidamente mais agitado do que no triste dia das capotagens. Mas, com o peso mais bem distribuído e fazendo uso dos tanques de lastro interno, o comportamento do barco foi exemplar, e em nenhum momento tive que soltar as âncoras de mar para estabilizar a deriva.
Com a bolina totalmente recolhida e os lastros abastecidos com água salgada, descobri que dificilmente me encontraria de novo deitado no teto, vendo os peixes pela escotilha, como se estivesse num aquário de ponta-cabeça.
Não passei naqueles sete dias por um momento sequer de monotonia, tristeza ou desespero. Pois nada é mais certo do que a chegada do bom tempo após uma tempestade que parece interminável.
Pior, muito pior do que as escandalosas tempestades, eram os momentos de tensão e expectativa provocados por traiçoeiras calmarias, quando as águas quietas e o vento morto traziam consigo a certeza de mudanças no tempo e de mar agitado pela frente.
Na terça-feira daquela semana, 3 de julho, fiz um perfeito QSO com o Brasil, e minhas dúvidas se confirmaram. Tão cedo o mar não melhoraria. O Donald, PY1 E MM da Escola Naval do Rio de Janeiro, me passou uma previsão do tempo nada otimista: ventos de sudoeste a noroeste, de trinta a 35 nós, e uma frente fria localizada a 23° de latitude Sul, 8° de longitude Leste, ou seja, logo abaixo de onde eu estava, avançando justamente em minha direção.
Era engraçado receber uma previsão meteorológica se nada poderia fazer para evitar um temporal; mas o simples fato de saber o que se passaria nas próximas horas era fantasticamente tranquilizador.
Aproveitei o tempo livre para pôr a casa em ordem e, ocupado o dia todo com pequenas tarefas, não sentia as horas voarem. Em primeiro lugar, separei as roupas que estavam numa grande sacola. O meu estoque de roupas secas estava quase no fim e foi necessário poupar as que ainda não tinham sal. Coloquei numa sacola separada as roupas ainda “doces” que usaria, a partir de então, unicamente para dormir ou permanecer dentro da cabine. As “salgadas”, na medida do possível, seriam postas para secar, e, como o sal nunca permite uma secagem completa, só seriam usadas para trabalhar em dias molhados. Uma terceira sacola só conteria as roupas encharcadas, o macacão de mau tempo e o heroico casaco vermelho.
Tentei fabricar um travesseiro (único item, entre os meus equipamentos, que fora esquecido e talvez o que mais me fazia falta), mas sem muito sucesso, pois o balanço do barco era tão vio- lento que o peso da cabeça, em poucos minutos, achatava o mais fofo protótipo de travesseiro. Montei uma papelaria com lápis, canetas e material de navegação numa caixinha de papelão, alojada no compartimento do rádio. Instalei o escritório com documentos, dinheiro que sobrara da África, alguns cruzeiros obsoletos e todos os livros e tábuas de navegação. A sala de energia ficou sendo um cantinho atrás das baterias, onde guardei as pilhas, lanterna, lâmpadas e todo o material elétrico de reposição. Providenciei um centro de processamento de dados composto unicamente por duas calculadoras eletrônicas, indispensáveis para o cálculo rápido de minhas posições. A farmácia, por falta de uso, seria transferida para o compartimento de mantimentos, na proa, assim que o tempo permitisse. As panelas de reserva e outros objetos sem muito uso, que não sofreriam com a umidade, foram alojados no lado de fora, na “bodega 5”, que já estava cheia de água. Ali, bem no fundo, guardava uma âncora de ferro que fora usada antes da partida e que pretendia soltar na areia, um dia, ao tocar a costa brasileira. Junto estavam três arpões, 250 metros de cabos variados e mangueiras de reserva para os tanques. Não quis tirar a água que entrava pela junta da tampa de acesso, pois o seu peso, enquanto eu não voltasse a remar, ajudaria a estabilizar o barco.
Encontrei tempo para ler alguns trechos de Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, presente da Anne Marie, ao deixar Lüderitz. E, entre as minhas fitas prediletas de clássicos e MPB, descobri uma engraçadíssima gravação de “rock pauleira” alemão que tomou conta do gravadorzinho, normalmente adepto de músicas mais tranquilas. Sem que percebesse, minhas preferências musicais iam aos poucos seguindo o ritmo do mar, agitadas e barulhentas como naquele momento, ou tristes e silenciosas quando atravessava, pensativo, inquietantes calmarias.
Certa manhã, ainda trancado e sem perspectiva de melhora do tempo, percorrendo as frequências do meu receptor, sintonizei uma rádio brasileira e não me contive de alegria. Era um programa da Rádio Globo, do Rio de Janeiro, apresentado por Paulo Giovanni e dirigido às donas de casa, num estilo que eu desconhecia totalmente. Horóscopo, receitas culinárias, “histórias da vida”, conselhos sobre maridos que dormiam fora de casa. Nossa, como eu me diverti! Pela primeira vez eu ouvia notícias em português. Ofertas de supermercados na Baixada Fluminense, problemas de trânsito no centro do Rio; sentia-me terrivelmente ligado ao Brasil. Anotei a frequência na parede branca da cabine: 11805 kHz. E passei a acompanhar diariamente o engraçado programa. Pouco durava a minha emoção, pois antes das nove horas, de Brasília, a propagação começava a baixar e, então, eu desligava o rádio.
Sexto dia fechado, e ainda nada. Impressionante como o tempo passa rápido. Eu entrava no vigésimo sexto dia de viagem e agora o cardápio sofria uma pequena modificação. Comecei a caprichar mais na cozinha e percebi que podia preparar pratos novos, com requintados temperos. Comer passou a ser a atividade mais interessante a bordo.
Há muito tempo me interessava pelo problema de alimentação no mar e observei, ao estudar as viagens de outros navegadores, que pouca atenção se dá à parte de nutrição. Em todos os relatos que li sobre longas permanências no mar eram frequentes os distúrbios digestivos, a dificuldade de cicatrização de ferimentos, os furúnculos e problemas de pele, e a falta de resistência física.
Quando falei com D’Aboville, em Paris, sobre sua travessia do Atlântico Norte, ele me confessou que o mais grave problema que enfrentou, e que, em pleno oceano, quase o obrigou a desistir de continuar, não foram tempestades ou tubarões, mas uma simples e terrível constipação dos intestinos. Ouvindo os detalhes sobre a penosa operação de lavagem intestinal a que foi obrigado a se submeter, decidi que em hipótese alguma passaria pelo mesmo calvário. Por que não desenvolver um programa de alimentação corretamente balanceado e adaptado à vida no mar?
Conheci, por intermédio do Rob, meu fiel colaborador durante a fase de preparativos, uma nutricionista, Flora Lys Spolidoro, que não se assustou nem riu do plano que eu tinha em mente. Apaixonante e, acima de tudo, competente, a Flora. Convenceu a diretoria da firma onde trabalhava, a Nutrimental, do interesse científico da ideia e, coordenando um grupo de nutricionistas, desenvolveu e executou um projeto completo de alimentação simplesmente impecável.
Sete mulheres maravilhosas que, após oito meses de pesquisa e trabalho, me agarraram pelo estômago.
Minha alimentação, à base de desidratados, atendia a uma série de pré-requisitos como: conservação em condições extremas de temperatura e umidade, baixo volume e peso, balanceamento perfeito, facilidade de preparo, e, sobretudo, consistência, aspecto e sabor iguais aos da comida caseira. Estava acondicionada em embalagens individuais numeradas de l a 119 por ordem de consumo, de modo a não alterar o balanceamento, que continham uma média de 4 200 calorias por dia. Se, em determinado dia, eu não tivesse fome, descartaria o cardápio desse dia, para retomar, no dia seguinte, a numeração correspondente. O mesmo cardápio só se repetiria a cada duas semanas e, desse modo, seria praticamente impossível torná-lo monótono ou consumi-lo sem apetite.
Mas o grande segredo do projeto era que, por uma questão logística, eu só cozinharia com água do mar, poupando o meu reduzido estoque de água potável e economizando um peso desnecessário — a água para cozinhar. Para isso, todos os alimentos foram desidratados sem sal e combinados de modo a anular o excesso de salinidade no preparo. O sucesso foi total.
Os primeiros 25 cardápios eram de preparo mais rápido e continham um pouco mais de calorias que os 94 normais, pois a Flora calculou que o começo da viagem seria difícil. Havia ainda cardápios específicos para diarreia, para emergência (que dispensavam o fogareiro) e ainda de sobrevivência, esses de consistência concentrada e à base de liofilizados, totalizando 150 dias de alimentação. Ao passar para o número 26, já nos cardápios normais, mais experiente no fogão, eu conseguia verdadeiras proezas culinárias, acompanhadas de exuberantes sobremesas que, tristemente, terminavam na dura obrigação de lavar panela e pratos.
Pois foi tentando lavar a minúscula panela de pressão, sem sair da cabine, que senti um violento raspão no fundo do barco. A pele áspera de um tubarão que se esfregava embaixo, fazendo um assustador barulho de lixa. As “visitas” estavam de volta e dessa vez me presentearam com uma hora de tensa companhia. As ondas batendo por cima, os tubarões lixando por baixo, consolei-me, pensando que pelo menos eles colaboravam com a limpeza do fundo. A parte submersa do casco estava pintada com uma tinta especial, antiincrustante, que evita a formação de cracas mas não impede o acúmulo de limo. Desde a partida, ainda não fizera nenhuma inspeção no fundo, e decidi que, com o tempo bom, e assim que as “visitas” parassem de “ajudar”, deveria mergulhar e verificar como se comportava a tinta especial.
Não havia nada a fazer além de adaptar-me a essa vida provisória, aguardando que o tempo melhorasse. Depois de tantos dias deitado, estava descansado e morria de saudades dos remos, eles também por uma semana deitados e amarrados no convés.
Finalmente, no oitavo dia o céu clareou e o mar ameaçou acalmar-se. Era um domingo, comemorava a quarta semana no mar, e remei por sete horas apesar de as ondas ainda se mostrarem um pouco nervosas.
No dia seguinte, com o céu limpo e horizonte definido, após cuidadosamente limpar e regular o sextante, pude observar o sol na passagem meridiana. Com as observações astronômicas da tarde, cruzando uma segunda reta de altura em ângulo, teria enfim a posição. Perdera por completo o controle de direção do barco, e não sabia onde estava. Progredira em latitude, não havia dúvida, mas em que direção? Para o norte, rumo à África, ou para Santa Helena, como pretendia? Tudo era possível, depois de tanto tempo, e, graças ao sol, eu teria a resposta.
Entrei para a cabine com as alturas observadas anotadas no meu caderninho de navegação, e coloquei os dados na calculadora eletrônica. Estava nervoso, ansioso para saber o resultado. E, no momento de pressionar a última tecla, ao tocá-la levemente como quem chora uma carta de baralho num jogo decisivo, segurei o dedo na expectativa de ver a diferença entre a posição calculada e a estimada. Se fosse positiva essa diferença, eu teria progredido. Se fosse negativa, eu estava frito. Fui apertando a teclinha devagar e . . . viva! Saiu um resultado positivo, muito melhor do que podia esperar. Estava a mais de quatrocentas milhas da costa africana mais próxima! Eufórico e feliz, saltei para fora, e, desafiando o horizonte, dei um longo grito de alegria. “Estou conseguindo!”, berrava. “Estou chegando lá! Santa Helena, prepare-se!”
Só os tubarões ouviram.
Faltavam mais de 3 mil milhas até o Brasil, mas agora tinha certeza de que estava a caminho. Nada mais me ligava à África. Ou quase.
Pendurado na alavanca interna da bomba de água, junto à minha cama, balançava um pedaço de carne de órix defumada, presente do Günther e que eu guardava para comer em alguma ocasião especial. Olhei para a carne e achei, não sei por que razão, que deveria devolvê-la ao mar. Jogueia na água, como se fosse uma oferenda devolvida. E, a partir desse instante, o mar acalmou-se e o tempo melhorou. Superstições à parte, tenho certeza de que a carne de órix foi bem recebida.