Estepe
Olavo Amaral
Estava morrendo de palavras. Ou ao menos é o que diziam os mé- dicos. Desde que a fibrose idiopática da glote fora diagnosticada, e aí já iam meses, tinha consciência de que meu destino era previsível. Cada vogal emitida, cada consoante articulada, cada vibração das cordas vocais agravaria a resposta inflamatória iniciada por meu cor- po, já destituído de forças para contê-la. E cada palavra falada con- tribuiria para o estreitamento das vias aéreas, roubando aos poucos o ar das respirações futuras até o dia em que ele me faltasse.
Não havia cura possível: minha única chance de escapar à tra- queostomia, segundo os médicos, seria me controlar e evitar ao má- ximo a comunicação verbal, que sempre fora uma de minhas virtu- des mais caras, além de meu instrumento de trabalho. E com isso me acostumar ao silêncio, e à renúncia voluntária a ter o que dizer — o que dadas minhas inclinações de espírito e minha posição, eu temia que fosse impossível.
Quando anunciei minha condição na universidade, foi você quem primeiro descobriu os Skali e os trouxe à minha atenção, em um dos encontros individuais que substituíram as aulas. Sua inten- ção era simples a ponto de beirar a ingenuidade: dentre todos os povos do mundo, deveria haver um cuja língua era mais pobre em palavras do que todas as outras. E depois de alguns dias de pesquisa no departamento de linguística comparada, absorta em idiomas ra- ros, você por fim chegou à resposta que queria.
A descoberta fez você mergulhar no universo dos Skali. Habi- tantes nômades da Sibéria, haviam se separado dos mais numerosos Nenet há pelo menos dois milênios e passado por uma divergência linguística acelerada devido ao isolamento geográfico. Seu alfabeto, transcrito em meados do século xix para o cirílico, possui apenas catorze letras, quase a metade da maior parte das línguas escritas. Pouquíssimo para os padrões ocidentais, mas suficiente para descre- ver um mundo composto de gelo, névoa e rebanhos de renas, capaz de garantir precariamente o sustento de uma etnia em extinção.
O vocabulário Skali, paupérrimo, resume-se a cerca de três mil palavras, quase oitenta por cento delas substantivos. Estes tendem a ser utilizados com um mínimo de recursividade, sem artigos, decli- nações ou outros adornos, e com quase nenhuma sintaxe. Nas raras vezes em que um Skali opta por se pronunciar, costuma fazê-lo ao modo simples das crianças: uma palavra única para referir-se a um objeto (um trenó, ublik, uma pá, fümp, uma tempestade, triblika), cuja importância é óbvia e dispensa explicações.
Os vinte por cento restantes do vocabulário consistem na maior parte em verbos simples e também capazes de sentido por si pró- prios, conjugando-se através da consoante final em presente, passa- do, futuro ou imperativo (“chove”, plek, “morreu”, yunb, “corra!”, gür). O resultado disso é que um Skali fala uma média de trezentas palavras por dia, ou pouco mais de cem mil por ano — menos de um terço do que a média dos outros povos siberianos, cuja língua se aproxima mais das raízes eslavas, e uma fração insignificante da produção verbal das culturas ocidentais.
Nada disso foi suficiente para que eu me interessasse muito pe- los Skali, que a princípio me pareceram apenas uma anomalia irrele- vante na curva gaussiana das línguas. Aos meus olhos, seu entusias- mo por eles parecia um impulso juvenil, que a idade me impedia de compartilhar. Mas então vieram as fotografias. Elas surgiram sem aviso sobre a mesa do escritório em um dia de setembro, guardadas em um envelope pardo sem remetente.
As imagens em preto e branco haviam sido feitas ainda no tem- po do comunismo, em um esforço soviético para descrever a varie- dade dos povos unidos sob a bandeira vermelha. As pessoas, porém, eram o que menos chamava a atenção nelas. Os homens de olhos puxados, que posavam desconfortáveis para as câmeras do exército, apequenavam-se diante da planície, em que céu e tundra se con- fundiam dentro da névoa gelada. Eventualmente, uma rena se fazia presente em algum canto da fotografia. De resto, só havia a estepe, branca e inerte.
Em nenhum dos retratos havia qualquer esboço de um sorriso, ou sequer de um abrir dos lábios. Mas não era isso, nem nada pró- prio aos Skali — feições, vestimentas ou adereços — que tornava palpável o silêncio. Ele transbordava da planície vazia ao redor dos corpos, que trazia consigo a constatação inegável de que não era necessário dizer nada.
Logo depois de ver as fotografias, mandei chamá-la ao meu es- critório, intuindo quem as havia deixado ali. Ao vê-la entrar na sala, antes mesmo de introduzir o assunto, percebi em seu olhar que você já compreendera o que eu pretendia. E quando perguntei se você gostaria de me acompanhar na jornada como minha assistente, seu sorriso tranquilo foi suficiente para que eu soubesse que sim.
A partir daí, foi você quem assumiu os preparativos da viagem, enquanto eu procurava os médicos para analisar a viabilidade da em- preitada. O laringologista me julgou maluco ao me ouvir explicar que precisava de um ambiente com menos palavras, e que pretendia encontrá-lo no norte da Sibéria. Mas suas opiniões sobre minha sa- nidade pouco me importavam: o que eu precisava saber eram apenas as chances de o frio vir a piorar minha condição.
Dois dias depois, veio a resposta prometida: no que dizia respei- to à laringe, não havia razão para temer as temperaturas glaciais. Ao que tudo indicava, a progressão da fibrose deveria inclusive diminuir com o frio, ou pelo menos era o que sugeriam os estudos em animais. Ainda assim, havia o resto do corpo e o espírito do lado de dentro. E estes teriam de resistir a um inverno que se afigurava brutal.
Nada disso, porém, foi suficiente para me desestimular. Pois eu sabia que você tomava as providências para que fôssemos acolhidos entre os Skali. Eles já haviam sido visitados por uma missão de geó- grafos de um departamento vizinho, e você levantava os contatos necessários para nos ajudar a ser aceitos por um povo sabidamente esquivo. E uma vez integrados a eles, que viviam dentro daquele inverno havia milhares de anos, sabíamos que teríamos nós também uma chance de enfrentá-lo.
Aterrissamos em Arkhangelsk no início do outono. Sabíamos que a escolha da estação estava longe de ser a ideal: encontraríamos o inverno pouco depois de chegar, e não poderia haver nada tão pouco auspicioso — ou francamente arriscado — em termos de calendário. Mas minha saúde inspirava pressa, e esperar não parecia uma opção sensata. Por mais que eu soubesse disso, minha convicção trepidava quando desci a escada do avião. Mas incapaz de protestar devido à doença, eu não tinha opção senão confiar no caminho que você havia planejado.
Melek, nosso guia, cumprimentou-nos com um aceno seco de cabeça, que depois descobriríamos ser uma saudação efusiva para os padrões dos Skali. Disse que era um orgulho para seu povo receber um intelectual daquele calibre, e que seríamos bem-vindos ali. Pouco depois de entrar no velho jipe Lada, porém, seus olhos se voltaram para a estrada à frente, e seu inglês esforçado se dissolveu no barulho do vento, no esfregar das mãos que se protegiam do frio, e em tantos outros ruídos que logo se tornariam dominantes em nossas vidas.
A impressão ao chegar ao acampamento dos Skali foi quase de decepção. Ao contrário da imensidão da planície, o acampamento na margem da cidade era simples, e sequer seu apelo pitoresco era significativo. Afora os impressionantes chums, grandes barracas de pele capazes de acomodar confortavelmente uma família inteira, os demais objetos espalhados pelo terreno não passavam de lixo ociden- tal, adquirido de segunda mão de trabalhadores russos. Mas os Skali nos receberam com quieta educação, e achamos que seria melhor não perder tempo com lamentos ou hesitações.
A partida rumo às planícies de Yamal se daria em duas semanas. O solo próximo à cidade congelava com demasiada facilidade no inverno, e para manter os rebanhos de renas, então alojados logo além dos subúrbios, era necessário migrar para pastagens melhores.
Até lá, frequentaríamos o acampamento para nos habituarmos às ta- refas básicas de sobrevivência: o transporte nos trenós, a construção das fogueiras e a montagem dos chums. Nossos primeiros dias foram dedicados a incontáveis ciclos de enrolar e desenrolar camadas de pele ao redor de troncos — habilidades que você, com uma força surpreendente, parecia ser mais capaz de dominar do que eu. E após tardes breves e intensas de trabalho, pois os dias já começavam a encurtar, nos retirávamos à nossa hospedagem na cidade, onde após um rápido boa-noite entrávamos cada qual em seu quarto, para que o sono se encarregasse de aliviar a espera.
Nosso momento de maior contato com os Skali eram as refei- ções, em que algumas poucas palavras — ou muitas, para eles — eram ditas pelo chefe do clã antes de a comida ser servida. Nos pri- meiros dias, olhávamos para Melek para que ele as traduzisse, mas com o tempo aprendemos que ele só o faria quando estivéssemos sentados em volta da fogueira, reunidos em torno do samovar com água fervente para partilhar o chá. “As palavras são ditas sobre a mesa, mas são para serem ouvidas mais tarde”, afirmava. Talvez pre- cisamente por isso, levaria tempo até que entendêssemos o que ele queria dizer.
No dia da partida, as nuvens desapareceram, e o céu azul refleti- do na neve ofuscava tudo ao redor. Perguntei a Melek como a coin- cidência era possível, mas ele limitou-se a lançar um olhar respeitoso em direção ao chefe do clã, como que em deferência à sua sabedoria. E pelo silêncio dele e dos outros, eu soube que o tempo das palavras, que nem tantas haviam sido, terminava para dar lugar ao tempo do trabalho. As primeiras renas eram trazidas de fora da cidade, a fim de puxarem os trenós de carga. Ao redor de nós, os Skali saíam em peso das tendas, ocupando-se em silenciosa harmonia das tarefas a desempenhar.
Enquanto você ajudava um par de meninos a dobrar um chum desmontado, senti-me perdido em meio à agitação metódica do acampamento, que lembrava a de um formigueiro em atividade. Mas eu não tinha opção senão integrar-me, e logo estava amarrando os anéis de madeira que prendiam os animais aos trenós, ouvindo a respiração tranquila da rena à minha frente enquanto os cães latiam ao redor. Concentrado na tarefa, foi apenas por um passo decidi- do do animal que me dei conta de que já estávamos partindo. Pois quando olhei em volta o clã havia se posto em marcha, e você estava em meio a eles sem que nada tivesse sido dito.
Uma vez iniciado, o movimento era límpido. Em questão de horas, uma aldeia inerte e desorganizada se transformara em uma marcha coesa e retilínea, que penetrava o território como uma lâmi- na pontiaguda. Tal qual um pássaro que, depois de circular aleatório por horas, iniciasse o mergulho rumo ao brilho do peixe. Exceto que não havia peixe ou brilho a nos chamar. Apenas a estepe. Uma estepe que nos dava as suas boas-vindas através do dia limpo, ao mesmo tempo em que deixava claras as suas condições no rigor gelado das rajadas de vento. Dando início uma vez mais a um jogo de regras transparentes e milenares, que só o frio e a adversidade eram capazes de ensinar.
Mas a despeito do inevitável desequilíbrio de forças entre nós e o clima, o que mais me chamava a atenção já não era a imensidão da paisagem ou o rigor do frio, mas a quieta obstinação da jornada. O andar impassível das renas, seguindo as mesmas rotas migrató- rias havia milênios. E a progressão vagarosa e inexorável daquela gente, que as acompanhava havia tanto tempo que era impossível saber quem seguia quem. Para homens e animais, aquele movimen- to de ida e volta era o mundo inteiro. Um mundo do qual, de uma forma que até então eu não tinha imaginado, nós começávamos a fazer parte.
Quando paramos para montar acampamento, o sol começava a baixar, e o frio já intenso em breve se faria letal. Sem delongas, você foi uma das primeiras a desenrolar o chum e iniciar sua montagem sobre as estacas cravadas no chão. Ao tentar ajudar na tarefa, minha iniciativa era mais automática do que pensada. Mas eu não podia dizer o mesmo de você, cujos olhos traduziam um entusiasmo quieto que eu quase não reconhecia, e que parecia denunciar que algo havia mudado.
Com a tenda pronta, apanhamos as malas de couro sobre um dos trenós e entramos, estranhando o fato de compartilhar aquele es- paço que haveria de ser nossa casa. Mas os chums eram poucos, e di- vidir um deles entre nós dois apenas já era um privilégio incomum. Do lado de dentro, permanecemos imóveis por um bom tempo, malas em mãos, até você tomar a iniciativa e depositar a sua sobre as peles espessas que nos serviriam de cama. Entre os cobertores, você a abriu e foi depositando no chão os livros, a gramática e um espelho, como se tudo aquilo fosse apenas natural.
Depois de acendermos a fogueira e prepararmos o chá, você foi a primeira a deitar. Hesitei até fazer o mesmo, cauteloso em ceder a uma proximidade estranha, que tornava nítido o quão pouco nos co- nhecíamos. Por longos minutos, pensei em assuntos para quebrar o silêncio, para logo em seguida lembrar que estava ali justamente para não fazê-lo. Na ausência do que dizer, passei a me distrair com os ruídos do lado de fora, enquanto você estudava declinações verbais, tranquila sob os cobertores. E à medida que a madeira sob as peles do chum rangia, sacudida pelo vento, aquele tênue arranjo ganhava sentido. Não havia outro lugar para estar, e isso se fazia óbvio à me- dida que o frio aumentava.
E enquanto o sono se insinuava, reclamando o corpo exausto pelo frio e pela viagem, o silêncio antes desconfortável foi se tor- nando acolhedor, como se a tensão de nossas posições distintas e solitárias no mundo entrasse em trégua. Uma última vez antes de adormecer, olhei para você ainda perplexo, sem saber o que fazer com aquela proximidade improvável. Mas você apenas sorriu, er- guendo o corpo para soprar a vela que iluminava a tenda e decretar que o dia findava.
Na manhã seguinte, alcançamos uma manada de renas livres e aguardamos por longas horas enquanto os membros jovens do clã partiam planície adentro com os cães para incorporá-las ao rebanho. Comemos o almoço em companhia das mulheres, que com a súbita quebra de hierarquia pareciam arriscar mais olhares em nossa dire- ção, sem que isso fosse suficiente para iniciar uma conversa. E quando os homens voltaram aos gritos de awak! (“sucesso!”), você foi a primeira a assumir seu posto na fileira para retomarmos a marcha.
Para compensar o tempo perdido, viajamos até mais tarde, e no fim do dia a exaustão se impunha. Ao penetrar no interior do chum recém-montado, sentindo a brusca diferença térmica, encontrei você já sob as cobertas, ao mesmo modo do dia anterior. Ao me ver, levan- tando brevemente os olhos do livro que folheava, você sorriu com um ar inquisitivo e disse “yuj?”. Por um momento aquilo me pareceu confuso, mas com algum esforço lembrei que aquela era a palavra em Skali para “lenha”. Abalado pelo cansaço, eu me esquecera de apanhar a madeira antes de entrar, e saí às pressas para buscá-la antes que a noite caísse.
Do lado de fora, os últimos entre os Skali já haviam se reco- lhido. O vento diminuíra, mas a calmaria prenunciava uma piora do clima, e as nuvens se acumulavam densas ao longe. Sem perder tempo, fui em direção ao depósito de lenha. E ali sozinho, já fora do perímetro das tendas, tive a dimensão do vazio que nos cercava, da estepe a se estender para todos os lados sem marco que oferecesse direção. Exceto por um tênue azul que ainda brilhava no céu, insufi- ciente para prevenir a noite, mas evocando ainda a posição do oeste e de um mundo que se distanciava dentro de mim.
Não havia tempo para nostalgia, porém, e depois de apanhar madeira suficiente, retornei sem hesitação ao chum. Lá dentro, você havia saído de seu posto sob as cobertas e me aguardava junto ao fogareiro. Deixando a lenha no chão, disse a você que retornasse à cama (“kür”) enquanto eu fazia o fogo. Mas você ficou ao meu lado enquanto eu assoprava a brasa no recipiente de metal para aumentar a chama. Depois de algum tempo, segurou meu braço de leve e disse que estava bom, que eu não precisava me preocupar (“kuyut”). Vendo que você me olhava, e sem saber o que dizer, até por conta de minhas limitações no idioma, tudo o que me ocorreu foi “traltak”. Obrigado.
E sem outra intenção além de agradecer por tudo aquilo segurei sua mão, feita pequena entre as mangas do casaco. Ao perceber o calor que irradiava do seu corpo abrigado, porém, me deixei ficar ali, quase sem perceber o que fazia, alternando meu olhar entre você e o fogo. Ao me dar conta do que começava a acontecer, temi que aqui- lo pudesse destruir a harmonia que havia se instituído entre nós e ainda tentei recuar. Mas quando comecei a me afastar, você segurou meu braço e escorregou sua mão novamente até a minha, para logo deslizá-la sob a manga do meu casaco e me segurar pelo pulso.
Ao sentir seu calor se infiltrar sob a roupa, àquela altura minha segunda pele, fui inundado pela sensação de não ser mais do que tato e temperatura, concentrados no pedaço de corpo em que você en- costava. Recordando não sei bem por quê a visão do lado de fora, da planície e de um azul que se apagava, segurei também o seu braço. E logo os dois pontos de contato foram insuficientes e transformaram- -se num abraço, em que às pressas tentávamos nos encontrar sob as grossas camadas de roupa.
Por um último momento ainda olhei para você, receoso de es- tar atravessando um limite delicado, e fiz menção de dizer algo. Mas como se percebesse a minha intenção, você tocou de leve o indicador em meus lábios, lembrando-me de que já não havia palavras, demar- cações ou fronteiras naquela latitude. Apenas a planície. Em poucos segundos sua roupa estava jogada sobre as peles de rena, e dali em diante me lembro do calor, de me sentir pequeno, de deixar a vastidão da estepe para trás e ser tragado para dentro de um silêncio maior.
Na manhã seguinte, despertei com o dia já claro. Ao meu lado, você ainda dormia sob os cobertores. Por um instante, me assustei por não ter ouvido o toque dos tambores de pele de rena. Pensei que tivés- semos sido deixados para trás, que os Skali já andavam à nossa frente e que estávamos perdidos para sempre em meio à tundra. Mas ao abrir a barraca às pressas, fui coberto por uma rajada de neve. E não vendo nada do lado de fora além de uma imensidão branca e indistinta, com- preendi o que se passava. Não havia condições para desfazer o acampa- mento, e nos restava aguardar no chum até que o tempo melhorasse.
Entre o desapontamento pela hostilidade do clima e o alívio de não ter sido abandonado, voltei pé ante pé à pilha de peles que nos servia de cama, na tentativa de não acordá-la. Mas você logo abriu as pálpebras, e seu olhar ao ver meu rosto, com os pedaços de gelo colados à barba, naturalmente deu lugar ao gesto de abrir espaço sob o cobertor. Como se você já soubesse que não tínhamos como ir a lugar algum. Como se de alguma forma você houvesse sabido disso desde o princípio.
Aquele seria apenas o primeiro de muitos dias em que estivemos impedidos de sair. Com o frio que se torna mais rigoroso, é cada vez mais comum que passemos vários dias presos a um mesmo local, com o horizonte encoberto pela névoa. Nas manhãs sem marcha, o trabalho não cessa, pois é necessário alimentar as renas e protegê-las das tempestades. A sobriedade dos Skali durante as refeições na ten- da central é até maior nestes dias do que nos de caminhada. Como se fosse necessário impedir que a imobilidade leve a um relaxamento do espírito, o que se mostraria fatal no momento de retomar o passo.
Tais pausas forçadas fazem com que passemos cada vez mais tem- po no chum. Tenho me adaptado devagar a essa rotina, aprendendo a dormir em pequenos lapsos durante o dia, o que parece ser natural para você. Nos momentos em que nossos corpos se afastam, nos ocupamos em conjugar verbos, revisar as quatro declinações simples e descobrir pérolas de concisão no vocabulário Skali (arküli, quebrar o gelo e fisgar o peixe; treëut, ir atrás das renas que escapam; ungat, permanecer juntos para que passe o frio). Quando sinto que não devo falar, escrevo. Você também permanece em silêncio na maior parte do tempo — seja para me fazer companhia, seja por estarmos com as bocas ocupadas com o corpo um do outro.
Por vezes sinto necessidade de sair, nos raros momentos em que o clima o permite. Quando você me acompanha, geralmente se ocupa em fazer esculturas com a neve, enquanto eu contemplo as nuvens ao longe. Ao nosso redor, os Skali trabalham silenciosos. Nos distraímos apontando na planície o pouco que há para observar — um capão de pinheiros, uma rocha maior, uma revoada de pássa- ros — e procurando nos dicionários os termos correspondentes. Sua destreza em encontrá-los é enorme, a ponto de me fazer suspeitar que você finge ignorá-los apenas para se manter no meu nível. Para o que não encontramos tradução, inventamos palavras com as mesmas raízes, tomando cuidado em manter o princípio da economia (klip, abraço; huf, saudade; yüm, uma vontade irresistível de sair do frio e voltar às cobertas).
E às vezes quando saio você prefere ficar na barraca, e isso está bem também. Nessas horas, como se tivesse de fazê-lo às escondidas, ensaio uma ou outra palavra em inglês para testar a glote e monitorar o progresso da doença. Se a garganta o permite, também aproveito para praticar minha pronúncia ainda truncada das consoantes dos Skali. Na maior parte dos dias, porém, apenas escrevo, mais para passar o tempo do que por ter muito a dizer. Mas logo algo me im- pele de volta à tenda, e ali encontro você num silêncio quase sempre maior do que o meu. “Yüldur”, você diz, apague as velas.
O inverno piora. Cada vez é mais difícil sair, mesmo para os Skali, que se dividem em turnos para alimentar as renas sem ar- riscarem-se à hipotermia. E apesar de nossa disposição para ajudar no serviço, sinto que eles começam a nos poupar do trabalho mais pesado, embora não o confessem.
A glote está bem, talvez até melhor do que antes da viagem, mas sinto pouca necessidade de falar. Por outro lado, minhas articulações têm me incomodado com frequência, como se o frio piorasse os sin- tomas de artrite antes incipientes. As tempestades no horizonte têm se tornado mais intensas e belas, e por vezes sou tentado a usar mi- nha língua natal para descrevê-las. Mas desperdiçar palavras, mesmo por escrito, começa a parecer desnecessário. Então tento imitar você e me limito a olhar, e a intensidade de não dizer nada é maior do que a de falar ou escrever. E nessas horas de não saber o que dizer — que são quase todas, pois é impossível compreender a estepe — quase sempre estamos juntos olhando o horizonte. E ali ficamos até que o frio se mostre mais forte e não haja outro caminho senão o que leva de volta à tenda.
Nos raros dias em que o sol irrompe em meio à tempestade, conseguimos retomar a marcha por algumas horas, gerando rebuliço entre os Skali, que se apressam em aprontar os trenós para partir. Nessas horas, já não estranho a agitação do trabalho. Apenas dirijo-me aos animais, murmuro em seus ouvidos (“bolὓr!”, vamos) e a partir daí, mesmo com as dores nos joelhos, acompanhar o fluxo é apenas natural. Uma parte tão inevitável da vida quanto respirar. E mesmo quando você passa ao meu lado na marcha, apenas sorrimos e seguimos caminhando, sem interromper o passo. Há muito por fazer, muita distância a trilhar.
Um ruído me desperta na madrugada, como um grito fantas- magórico em meio ao vento. Ao meu lado, você dorme tranquila, sem roupa e um pouco suada sob os cobertores. Sem sono, eu me le- vanto, coloco o casaco e me dirijo à entrada da tenda. Quando paro em frente a ela, percebo que os ruídos desapareceram junto com os restos do sonho de instantes atrás, em que lobos perseguiam as renas floresta adentro e você não estava comigo.
Então me viro de volta e observo o seu sono, sempre mais pro- fundo e imóvel do que o meu. Permaneço ali por um longo tempo, estranhando a perspectiva de vê-la de longe. Talvez por ser obser- vada, você pouco a pouco desperta, abre um olho, depois o outro. Olha para mim com um sorriso, sem que eu entenda por quê. E então fala, numa voz lenta e ainda encharcada de sono:
“Brel” (“Luz”).
“Tritlir, tritlir” (“Dorme”), eu respondo.
“Brel. Ewar” (“Luz. Vamos sair”).
Com um entusiasmo que eu demoro a compreender, você levanta da cama às pressas, calça as botas e coloca o casaco ao redor do corpo nu. Precipitando-se na minha direção, pega a minha mão e me leva até a entrada da tenda. E quando saímos, sentindo o frio cor- tante, de fato a luz está no horizonte, sobre nós, em todos os lugares.
Sob os arcos verdes da aurora boreal, você abre os braços e olha o céu. E ainda que não diga nada, o movimento traduz o deslumbre do seu silêncio. Sabemos que o momento não pode durar, que logo teremos de voltar para a barraca sob pena de não sobrevivermos. Mas por um instante estamos no centro de tudo, no espaço e no tempo. De pé, ao lado da tenda, seus braços erguidos contra a luz irreal são a última referência que resta na escuridão da planície.
*
Apesar das tempestades de neve, já acumulamos três dias segui- dos de marcha. O líder do clã teme que a pastagem congele além do alcance das renas se pararmos por mais tempo, o que nos colocaria sob risco de inanição. E ainda que seja impossível não lhe dar razão, a fome por vezes não parece um mau destino comparada ao esgota- mento que se apodera do meu corpo.
De certa forma, sinto que o frio começa a cobrar sua dívida. O preço enorme a ser pago pelo privilégio de estar em silêncio. Ainda sou capaz de acompanhar a marcha, mas a artrite piora a cada dia, e caminhar me custa cada vez mais. Quando montamos acampamen- to, você é rápida em me trazer para dentro, aquecer a água e cobrir meus joelhos com compressas quentes. Seu rosto nessas horas não transparece susto nem pena. Apenas a convicção tranquila de estar fazendo a única coisa possível, o que talvez se possa chamar de amor.
Com a piora da artrite, as palavras, que já me eram letais quando faladas, começam a me faltar também enquanto escritas. Meus dedos já não se fecham por completo, e minha destreza se perde com o en- rijecimento que começa a se apoderar das articulações. Defrontado com a hipótese de ter de parar de escrever, penso sem muito interesse nas opções que me restarão para comunicar conceitos complexos, se eles se fizerem necessários. Mas essa necessidade parece cada vez mais improvável. Porque sei que quando eu estiver calado você estará por perto, e saberá o que dizer, mesmo sem precisar fazê-lo.
E enquanto o sol se põe atrás da massa cinza, que em breve se tornará uma nova tempestade de neve, eu contemplo a extensão da planície. Dentre as poucas palavras do vocabulário Skali, não há ne- nhuma que sirva para descrever seu território. Ele está em toda parte, e não é necessário referi-lo; basta aceitar, pois não há nada além. Olho para os Skali, que terminam de preparar o acampamento ao nosso redor, alheios à nossa presença. Vejo o fogo que bruxuleia em nossa tenda, a tênue segurança desse arranjo provisório em meio à estepe intransponível. E sinto que me aproximo de uma espécie de compreensão, mesmo que insuficiente, do sentido desse vertiginoso mergulho em direção ao silêncio.
E enquanto olho as letras cada vez mais deformadas e hesitantes que se acumulam sobre o papel, sei que elas não são capazes de ex- pressar nada disso. Como minha voz, presa entre meu sotaque rudi- mentar e o inglês que começo a esquecer, tampouco seria. Por mais que ambas se esvaiam, porém, sei que guardarei comigo as poucas palavras de que ainda preciso, num vocabulário ainda menor do que o dos Skali. Mas que será suficiente para dar conta do pouco que sei.
À noite, o chefe do clã visita nossa tenda. Inesperadamente, ele faz sinal com a cabeça para que saiamos com ele e o acompanhemos até a borda do acampamento. Ele senta ao nosso lado. Pouco tem- po depois, leva você até um canto reservado, para que possam falar sem que eu os escute. Ele aponta para nossa tenda, para o centro do acampamento, e eu entendo o que ele quer dizer. Não haverá mar- cha amanhã. Ou ao menos não para mim. Os Skali chamam isso de yurfit. Compaixão.
Pouco depois, ele retorna até mim e toca sua mão parruda em minha testa. Em seguida se retira, em silêncio, deixando-nos sozi- nhos em meio à neve. Penso em retornar à tenda, mas de alguma forma compreendo que esse tempo passou, que o que me resta é o frio. Então me deixo repousar lentamente no seu colo, com o bloco de notas em mãos, e o olhar fixo no sorriso que me embala tranqui- lo, sem nada mais que tenha nome ao redor.
O vento sopra forte. Minha mão titubeia, depois escreve algu- mas poucas palavras trôpegas. Por seu sorriso, eu percebo que você ainda é capaz de reconhecê-las. E isso basta.
Ar. Planície. Neve. Inverno. Pele. Calor. Rena. Luz. Leite. Tundra. Chão. Fogo. Tenda. Lenha. Norte. Dor. Alívio. Frio. Corpo. Espaço. Neve. Frio. Pão. Silêncio. Corpo. Frio. Neve. Neve.
Frio. Calor. Corpo. Silêncio.
Neve. Neve. Neve. Fim.
Estepe.
Você.
Não havia cura possível: minha única chance de escapar à tra- queostomia, segundo os médicos, seria me controlar e evitar ao má- ximo a comunicação verbal, que sempre fora uma de minhas virtu- des mais caras, além de meu instrumento de trabalho. E com isso me acostumar ao silêncio, e à renúncia voluntária a ter o que dizer — o que dadas minhas inclinações de espírito e minha posição, eu temia que fosse impossível.
Quando anunciei minha condição na universidade, foi você quem primeiro descobriu os Skali e os trouxe à minha atenção, em um dos encontros individuais que substituíram as aulas. Sua inten- ção era simples a ponto de beirar a ingenuidade: dentre todos os povos do mundo, deveria haver um cuja língua era mais pobre em palavras do que todas as outras. E depois de alguns dias de pesquisa no departamento de linguística comparada, absorta em idiomas ra- ros, você por fim chegou à resposta que queria.
A descoberta fez você mergulhar no universo dos Skali. Habi- tantes nômades da Sibéria, haviam se separado dos mais numerosos Nenet há pelo menos dois milênios e passado por uma divergência linguística acelerada devido ao isolamento geográfico. Seu alfabeto, transcrito em meados do século xix para o cirílico, possui apenas catorze letras, quase a metade da maior parte das línguas escritas. Pouquíssimo para os padrões ocidentais, mas suficiente para descre- ver um mundo composto de gelo, névoa e rebanhos de renas, capaz de garantir precariamente o sustento de uma etnia em extinção.
O vocabulário Skali, paupérrimo, resume-se a cerca de três mil palavras, quase oitenta por cento delas substantivos. Estes tendem a ser utilizados com um mínimo de recursividade, sem artigos, decli- nações ou outros adornos, e com quase nenhuma sintaxe. Nas raras vezes em que um Skali opta por se pronunciar, costuma fazê-lo ao modo simples das crianças: uma palavra única para referir-se a um objeto (um trenó, ublik, uma pá, fümp, uma tempestade, triblika), cuja importância é óbvia e dispensa explicações.
Os vinte por cento restantes do vocabulário consistem na maior parte em verbos simples e também capazes de sentido por si pró- prios, conjugando-se através da consoante final em presente, passa- do, futuro ou imperativo (“chove”, plek, “morreu”, yunb, “corra!”, gür). O resultado disso é que um Skali fala uma média de trezentas palavras por dia, ou pouco mais de cem mil por ano — menos de um terço do que a média dos outros povos siberianos, cuja língua se aproxima mais das raízes eslavas, e uma fração insignificante da produção verbal das culturas ocidentais.
Nada disso foi suficiente para que eu me interessasse muito pe- los Skali, que a princípio me pareceram apenas uma anomalia irrele- vante na curva gaussiana das línguas. Aos meus olhos, seu entusias- mo por eles parecia um impulso juvenil, que a idade me impedia de compartilhar. Mas então vieram as fotografias. Elas surgiram sem aviso sobre a mesa do escritório em um dia de setembro, guardadas em um envelope pardo sem remetente.
As imagens em preto e branco haviam sido feitas ainda no tem- po do comunismo, em um esforço soviético para descrever a varie- dade dos povos unidos sob a bandeira vermelha. As pessoas, porém, eram o que menos chamava a atenção nelas. Os homens de olhos puxados, que posavam desconfortáveis para as câmeras do exército, apequenavam-se diante da planície, em que céu e tundra se con- fundiam dentro da névoa gelada. Eventualmente, uma rena se fazia presente em algum canto da fotografia. De resto, só havia a estepe, branca e inerte.
Em nenhum dos retratos havia qualquer esboço de um sorriso, ou sequer de um abrir dos lábios. Mas não era isso, nem nada pró- prio aos Skali — feições, vestimentas ou adereços — que tornava palpável o silêncio. Ele transbordava da planície vazia ao redor dos corpos, que trazia consigo a constatação inegável de que não era necessário dizer nada.
Logo depois de ver as fotografias, mandei chamá-la ao meu es- critório, intuindo quem as havia deixado ali. Ao vê-la entrar na sala, antes mesmo de introduzir o assunto, percebi em seu olhar que você já compreendera o que eu pretendia. E quando perguntei se você gostaria de me acompanhar na jornada como minha assistente, seu sorriso tranquilo foi suficiente para que eu soubesse que sim.
A partir daí, foi você quem assumiu os preparativos da viagem, enquanto eu procurava os médicos para analisar a viabilidade da em- preitada. O laringologista me julgou maluco ao me ouvir explicar que precisava de um ambiente com menos palavras, e que pretendia encontrá-lo no norte da Sibéria. Mas suas opiniões sobre minha sa- nidade pouco me importavam: o que eu precisava saber eram apenas as chances de o frio vir a piorar minha condição.
Dois dias depois, veio a resposta prometida: no que dizia respei- to à laringe, não havia razão para temer as temperaturas glaciais. Ao que tudo indicava, a progressão da fibrose deveria inclusive diminuir com o frio, ou pelo menos era o que sugeriam os estudos em animais. Ainda assim, havia o resto do corpo e o espírito do lado de dentro. E estes teriam de resistir a um inverno que se afigurava brutal.
Nada disso, porém, foi suficiente para me desestimular. Pois eu sabia que você tomava as providências para que fôssemos acolhidos entre os Skali. Eles já haviam sido visitados por uma missão de geó- grafos de um departamento vizinho, e você levantava os contatos necessários para nos ajudar a ser aceitos por um povo sabidamente esquivo. E uma vez integrados a eles, que viviam dentro daquele inverno havia milhares de anos, sabíamos que teríamos nós também uma chance de enfrentá-lo.
Aterrissamos em Arkhangelsk no início do outono. Sabíamos que a escolha da estação estava longe de ser a ideal: encontraríamos o inverno pouco depois de chegar, e não poderia haver nada tão pouco auspicioso — ou francamente arriscado — em termos de calendário. Mas minha saúde inspirava pressa, e esperar não parecia uma opção sensata. Por mais que eu soubesse disso, minha convicção trepidava quando desci a escada do avião. Mas incapaz de protestar devido à doença, eu não tinha opção senão confiar no caminho que você havia planejado.
Melek, nosso guia, cumprimentou-nos com um aceno seco de cabeça, que depois descobriríamos ser uma saudação efusiva para os padrões dos Skali. Disse que era um orgulho para seu povo receber um intelectual daquele calibre, e que seríamos bem-vindos ali. Pouco depois de entrar no velho jipe Lada, porém, seus olhos se voltaram para a estrada à frente, e seu inglês esforçado se dissolveu no barulho do vento, no esfregar das mãos que se protegiam do frio, e em tantos outros ruídos que logo se tornariam dominantes em nossas vidas.
A impressão ao chegar ao acampamento dos Skali foi quase de decepção. Ao contrário da imensidão da planície, o acampamento na margem da cidade era simples, e sequer seu apelo pitoresco era significativo. Afora os impressionantes chums, grandes barracas de pele capazes de acomodar confortavelmente uma família inteira, os demais objetos espalhados pelo terreno não passavam de lixo ociden- tal, adquirido de segunda mão de trabalhadores russos. Mas os Skali nos receberam com quieta educação, e achamos que seria melhor não perder tempo com lamentos ou hesitações.
A partida rumo às planícies de Yamal se daria em duas semanas. O solo próximo à cidade congelava com demasiada facilidade no inverno, e para manter os rebanhos de renas, então alojados logo além dos subúrbios, era necessário migrar para pastagens melhores.
Até lá, frequentaríamos o acampamento para nos habituarmos às ta- refas básicas de sobrevivência: o transporte nos trenós, a construção das fogueiras e a montagem dos chums. Nossos primeiros dias foram dedicados a incontáveis ciclos de enrolar e desenrolar camadas de pele ao redor de troncos — habilidades que você, com uma força surpreendente, parecia ser mais capaz de dominar do que eu. E após tardes breves e intensas de trabalho, pois os dias já começavam a encurtar, nos retirávamos à nossa hospedagem na cidade, onde após um rápido boa-noite entrávamos cada qual em seu quarto, para que o sono se encarregasse de aliviar a espera.
Nosso momento de maior contato com os Skali eram as refei- ções, em que algumas poucas palavras — ou muitas, para eles — eram ditas pelo chefe do clã antes de a comida ser servida. Nos pri- meiros dias, olhávamos para Melek para que ele as traduzisse, mas com o tempo aprendemos que ele só o faria quando estivéssemos sentados em volta da fogueira, reunidos em torno do samovar com água fervente para partilhar o chá. “As palavras são ditas sobre a mesa, mas são para serem ouvidas mais tarde”, afirmava. Talvez pre- cisamente por isso, levaria tempo até que entendêssemos o que ele queria dizer.
No dia da partida, as nuvens desapareceram, e o céu azul refleti- do na neve ofuscava tudo ao redor. Perguntei a Melek como a coin- cidência era possível, mas ele limitou-se a lançar um olhar respeitoso em direção ao chefe do clã, como que em deferência à sua sabedoria. E pelo silêncio dele e dos outros, eu soube que o tempo das palavras, que nem tantas haviam sido, terminava para dar lugar ao tempo do trabalho. As primeiras renas eram trazidas de fora da cidade, a fim de puxarem os trenós de carga. Ao redor de nós, os Skali saíam em peso das tendas, ocupando-se em silenciosa harmonia das tarefas a desempenhar.
Enquanto você ajudava um par de meninos a dobrar um chum desmontado, senti-me perdido em meio à agitação metódica do acampamento, que lembrava a de um formigueiro em atividade. Mas eu não tinha opção senão integrar-me, e logo estava amarrando os anéis de madeira que prendiam os animais aos trenós, ouvindo a respiração tranquila da rena à minha frente enquanto os cães latiam ao redor. Concentrado na tarefa, foi apenas por um passo decidi- do do animal que me dei conta de que já estávamos partindo. Pois quando olhei em volta o clã havia se posto em marcha, e você estava em meio a eles sem que nada tivesse sido dito.
Uma vez iniciado, o movimento era límpido. Em questão de horas, uma aldeia inerte e desorganizada se transformara em uma marcha coesa e retilínea, que penetrava o território como uma lâmi- na pontiaguda. Tal qual um pássaro que, depois de circular aleatório por horas, iniciasse o mergulho rumo ao brilho do peixe. Exceto que não havia peixe ou brilho a nos chamar. Apenas a estepe. Uma estepe que nos dava as suas boas-vindas através do dia limpo, ao mesmo tempo em que deixava claras as suas condições no rigor gelado das rajadas de vento. Dando início uma vez mais a um jogo de regras transparentes e milenares, que só o frio e a adversidade eram capazes de ensinar.
Mas a despeito do inevitável desequilíbrio de forças entre nós e o clima, o que mais me chamava a atenção já não era a imensidão da paisagem ou o rigor do frio, mas a quieta obstinação da jornada. O andar impassível das renas, seguindo as mesmas rotas migrató- rias havia milênios. E a progressão vagarosa e inexorável daquela gente, que as acompanhava havia tanto tempo que era impossível saber quem seguia quem. Para homens e animais, aquele movimen- to de ida e volta era o mundo inteiro. Um mundo do qual, de uma forma que até então eu não tinha imaginado, nós começávamos a fazer parte.
Quando paramos para montar acampamento, o sol começava a baixar, e o frio já intenso em breve se faria letal. Sem delongas, você foi uma das primeiras a desenrolar o chum e iniciar sua montagem sobre as estacas cravadas no chão. Ao tentar ajudar na tarefa, minha iniciativa era mais automática do que pensada. Mas eu não podia dizer o mesmo de você, cujos olhos traduziam um entusiasmo quieto que eu quase não reconhecia, e que parecia denunciar que algo havia mudado.
Com a tenda pronta, apanhamos as malas de couro sobre um dos trenós e entramos, estranhando o fato de compartilhar aquele es- paço que haveria de ser nossa casa. Mas os chums eram poucos, e di- vidir um deles entre nós dois apenas já era um privilégio incomum. Do lado de dentro, permanecemos imóveis por um bom tempo, malas em mãos, até você tomar a iniciativa e depositar a sua sobre as peles espessas que nos serviriam de cama. Entre os cobertores, você a abriu e foi depositando no chão os livros, a gramática e um espelho, como se tudo aquilo fosse apenas natural.
Depois de acendermos a fogueira e prepararmos o chá, você foi a primeira a deitar. Hesitei até fazer o mesmo, cauteloso em ceder a uma proximidade estranha, que tornava nítido o quão pouco nos co- nhecíamos. Por longos minutos, pensei em assuntos para quebrar o silêncio, para logo em seguida lembrar que estava ali justamente para não fazê-lo. Na ausência do que dizer, passei a me distrair com os ruídos do lado de fora, enquanto você estudava declinações verbais, tranquila sob os cobertores. E à medida que a madeira sob as peles do chum rangia, sacudida pelo vento, aquele tênue arranjo ganhava sentido. Não havia outro lugar para estar, e isso se fazia óbvio à me- dida que o frio aumentava.
E enquanto o sono se insinuava, reclamando o corpo exausto pelo frio e pela viagem, o silêncio antes desconfortável foi se tor- nando acolhedor, como se a tensão de nossas posições distintas e solitárias no mundo entrasse em trégua. Uma última vez antes de adormecer, olhei para você ainda perplexo, sem saber o que fazer com aquela proximidade improvável. Mas você apenas sorriu, er- guendo o corpo para soprar a vela que iluminava a tenda e decretar que o dia findava.
Na manhã seguinte, alcançamos uma manada de renas livres e aguardamos por longas horas enquanto os membros jovens do clã partiam planície adentro com os cães para incorporá-las ao rebanho. Comemos o almoço em companhia das mulheres, que com a súbita quebra de hierarquia pareciam arriscar mais olhares em nossa dire- ção, sem que isso fosse suficiente para iniciar uma conversa. E quando os homens voltaram aos gritos de awak! (“sucesso!”), você foi a primeira a assumir seu posto na fileira para retomarmos a marcha.
Para compensar o tempo perdido, viajamos até mais tarde, e no fim do dia a exaustão se impunha. Ao penetrar no interior do chum recém-montado, sentindo a brusca diferença térmica, encontrei você já sob as cobertas, ao mesmo modo do dia anterior. Ao me ver, levan- tando brevemente os olhos do livro que folheava, você sorriu com um ar inquisitivo e disse “yuj?”. Por um momento aquilo me pareceu confuso, mas com algum esforço lembrei que aquela era a palavra em Skali para “lenha”. Abalado pelo cansaço, eu me esquecera de apanhar a madeira antes de entrar, e saí às pressas para buscá-la antes que a noite caísse.
Do lado de fora, os últimos entre os Skali já haviam se reco- lhido. O vento diminuíra, mas a calmaria prenunciava uma piora do clima, e as nuvens se acumulavam densas ao longe. Sem perder tempo, fui em direção ao depósito de lenha. E ali sozinho, já fora do perímetro das tendas, tive a dimensão do vazio que nos cercava, da estepe a se estender para todos os lados sem marco que oferecesse direção. Exceto por um tênue azul que ainda brilhava no céu, insufi- ciente para prevenir a noite, mas evocando ainda a posição do oeste e de um mundo que se distanciava dentro de mim.
Não havia tempo para nostalgia, porém, e depois de apanhar madeira suficiente, retornei sem hesitação ao chum. Lá dentro, você havia saído de seu posto sob as cobertas e me aguardava junto ao fogareiro. Deixando a lenha no chão, disse a você que retornasse à cama (“kür”) enquanto eu fazia o fogo. Mas você ficou ao meu lado enquanto eu assoprava a brasa no recipiente de metal para aumentar a chama. Depois de algum tempo, segurou meu braço de leve e disse que estava bom, que eu não precisava me preocupar (“kuyut”). Vendo que você me olhava, e sem saber o que dizer, até por conta de minhas limitações no idioma, tudo o que me ocorreu foi “traltak”. Obrigado.
E sem outra intenção além de agradecer por tudo aquilo segurei sua mão, feita pequena entre as mangas do casaco. Ao perceber o calor que irradiava do seu corpo abrigado, porém, me deixei ficar ali, quase sem perceber o que fazia, alternando meu olhar entre você e o fogo. Ao me dar conta do que começava a acontecer, temi que aqui- lo pudesse destruir a harmonia que havia se instituído entre nós e ainda tentei recuar. Mas quando comecei a me afastar, você segurou meu braço e escorregou sua mão novamente até a minha, para logo deslizá-la sob a manga do meu casaco e me segurar pelo pulso.
Ao sentir seu calor se infiltrar sob a roupa, àquela altura minha segunda pele, fui inundado pela sensação de não ser mais do que tato e temperatura, concentrados no pedaço de corpo em que você en- costava. Recordando não sei bem por quê a visão do lado de fora, da planície e de um azul que se apagava, segurei também o seu braço. E logo os dois pontos de contato foram insuficientes e transformaram- -se num abraço, em que às pressas tentávamos nos encontrar sob as grossas camadas de roupa.
Por um último momento ainda olhei para você, receoso de es- tar atravessando um limite delicado, e fiz menção de dizer algo. Mas como se percebesse a minha intenção, você tocou de leve o indicador em meus lábios, lembrando-me de que já não havia palavras, demar- cações ou fronteiras naquela latitude. Apenas a planície. Em poucos segundos sua roupa estava jogada sobre as peles de rena, e dali em diante me lembro do calor, de me sentir pequeno, de deixar a vastidão da estepe para trás e ser tragado para dentro de um silêncio maior.
Na manhã seguinte, despertei com o dia já claro. Ao meu lado, você ainda dormia sob os cobertores. Por um instante, me assustei por não ter ouvido o toque dos tambores de pele de rena. Pensei que tivés- semos sido deixados para trás, que os Skali já andavam à nossa frente e que estávamos perdidos para sempre em meio à tundra. Mas ao abrir a barraca às pressas, fui coberto por uma rajada de neve. E não vendo nada do lado de fora além de uma imensidão branca e indistinta, com- preendi o que se passava. Não havia condições para desfazer o acampa- mento, e nos restava aguardar no chum até que o tempo melhorasse.
Entre o desapontamento pela hostilidade do clima e o alívio de não ter sido abandonado, voltei pé ante pé à pilha de peles que nos servia de cama, na tentativa de não acordá-la. Mas você logo abriu as pálpebras, e seu olhar ao ver meu rosto, com os pedaços de gelo colados à barba, naturalmente deu lugar ao gesto de abrir espaço sob o cobertor. Como se você já soubesse que não tínhamos como ir a lugar algum. Como se de alguma forma você houvesse sabido disso desde o princípio.
Aquele seria apenas o primeiro de muitos dias em que estivemos impedidos de sair. Com o frio que se torna mais rigoroso, é cada vez mais comum que passemos vários dias presos a um mesmo local, com o horizonte encoberto pela névoa. Nas manhãs sem marcha, o trabalho não cessa, pois é necessário alimentar as renas e protegê-las das tempestades. A sobriedade dos Skali durante as refeições na ten- da central é até maior nestes dias do que nos de caminhada. Como se fosse necessário impedir que a imobilidade leve a um relaxamento do espírito, o que se mostraria fatal no momento de retomar o passo.
Tais pausas forçadas fazem com que passemos cada vez mais tem- po no chum. Tenho me adaptado devagar a essa rotina, aprendendo a dormir em pequenos lapsos durante o dia, o que parece ser natural para você. Nos momentos em que nossos corpos se afastam, nos ocupamos em conjugar verbos, revisar as quatro declinações simples e descobrir pérolas de concisão no vocabulário Skali (arküli, quebrar o gelo e fisgar o peixe; treëut, ir atrás das renas que escapam; ungat, permanecer juntos para que passe o frio). Quando sinto que não devo falar, escrevo. Você também permanece em silêncio na maior parte do tempo — seja para me fazer companhia, seja por estarmos com as bocas ocupadas com o corpo um do outro.
Por vezes sinto necessidade de sair, nos raros momentos em que o clima o permite. Quando você me acompanha, geralmente se ocupa em fazer esculturas com a neve, enquanto eu contemplo as nuvens ao longe. Ao nosso redor, os Skali trabalham silenciosos. Nos distraímos apontando na planície o pouco que há para observar — um capão de pinheiros, uma rocha maior, uma revoada de pássa- ros — e procurando nos dicionários os termos correspondentes. Sua destreza em encontrá-los é enorme, a ponto de me fazer suspeitar que você finge ignorá-los apenas para se manter no meu nível. Para o que não encontramos tradução, inventamos palavras com as mesmas raízes, tomando cuidado em manter o princípio da economia (klip, abraço; huf, saudade; yüm, uma vontade irresistível de sair do frio e voltar às cobertas).
E às vezes quando saio você prefere ficar na barraca, e isso está bem também. Nessas horas, como se tivesse de fazê-lo às escondidas, ensaio uma ou outra palavra em inglês para testar a glote e monitorar o progresso da doença. Se a garganta o permite, também aproveito para praticar minha pronúncia ainda truncada das consoantes dos Skali. Na maior parte dos dias, porém, apenas escrevo, mais para passar o tempo do que por ter muito a dizer. Mas logo algo me im- pele de volta à tenda, e ali encontro você num silêncio quase sempre maior do que o meu. “Yüldur”, você diz, apague as velas.
O inverno piora. Cada vez é mais difícil sair, mesmo para os Skali, que se dividem em turnos para alimentar as renas sem ar- riscarem-se à hipotermia. E apesar de nossa disposição para ajudar no serviço, sinto que eles começam a nos poupar do trabalho mais pesado, embora não o confessem.
A glote está bem, talvez até melhor do que antes da viagem, mas sinto pouca necessidade de falar. Por outro lado, minhas articulações têm me incomodado com frequência, como se o frio piorasse os sin- tomas de artrite antes incipientes. As tempestades no horizonte têm se tornado mais intensas e belas, e por vezes sou tentado a usar mi- nha língua natal para descrevê-las. Mas desperdiçar palavras, mesmo por escrito, começa a parecer desnecessário. Então tento imitar você e me limito a olhar, e a intensidade de não dizer nada é maior do que a de falar ou escrever. E nessas horas de não saber o que dizer — que são quase todas, pois é impossível compreender a estepe — quase sempre estamos juntos olhando o horizonte. E ali ficamos até que o frio se mostre mais forte e não haja outro caminho senão o que leva de volta à tenda.
Nos raros dias em que o sol irrompe em meio à tempestade, conseguimos retomar a marcha por algumas horas, gerando rebuliço entre os Skali, que se apressam em aprontar os trenós para partir. Nessas horas, já não estranho a agitação do trabalho. Apenas dirijo-me aos animais, murmuro em seus ouvidos (“bolὓr!”, vamos) e a partir daí, mesmo com as dores nos joelhos, acompanhar o fluxo é apenas natural. Uma parte tão inevitável da vida quanto respirar. E mesmo quando você passa ao meu lado na marcha, apenas sorrimos e seguimos caminhando, sem interromper o passo. Há muito por fazer, muita distância a trilhar.
Um ruído me desperta na madrugada, como um grito fantas- magórico em meio ao vento. Ao meu lado, você dorme tranquila, sem roupa e um pouco suada sob os cobertores. Sem sono, eu me le- vanto, coloco o casaco e me dirijo à entrada da tenda. Quando paro em frente a ela, percebo que os ruídos desapareceram junto com os restos do sonho de instantes atrás, em que lobos perseguiam as renas floresta adentro e você não estava comigo.
Então me viro de volta e observo o seu sono, sempre mais pro- fundo e imóvel do que o meu. Permaneço ali por um longo tempo, estranhando a perspectiva de vê-la de longe. Talvez por ser obser- vada, você pouco a pouco desperta, abre um olho, depois o outro. Olha para mim com um sorriso, sem que eu entenda por quê. E então fala, numa voz lenta e ainda encharcada de sono:
“Brel” (“Luz”).
“Tritlir, tritlir” (“Dorme”), eu respondo.
“Brel. Ewar” (“Luz. Vamos sair”).
Com um entusiasmo que eu demoro a compreender, você levanta da cama às pressas, calça as botas e coloca o casaco ao redor do corpo nu. Precipitando-se na minha direção, pega a minha mão e me leva até a entrada da tenda. E quando saímos, sentindo o frio cor- tante, de fato a luz está no horizonte, sobre nós, em todos os lugares.
Sob os arcos verdes da aurora boreal, você abre os braços e olha o céu. E ainda que não diga nada, o movimento traduz o deslumbre do seu silêncio. Sabemos que o momento não pode durar, que logo teremos de voltar para a barraca sob pena de não sobrevivermos. Mas por um instante estamos no centro de tudo, no espaço e no tempo. De pé, ao lado da tenda, seus braços erguidos contra a luz irreal são a última referência que resta na escuridão da planície.
*
Apesar das tempestades de neve, já acumulamos três dias segui- dos de marcha. O líder do clã teme que a pastagem congele além do alcance das renas se pararmos por mais tempo, o que nos colocaria sob risco de inanição. E ainda que seja impossível não lhe dar razão, a fome por vezes não parece um mau destino comparada ao esgota- mento que se apodera do meu corpo.
De certa forma, sinto que o frio começa a cobrar sua dívida. O preço enorme a ser pago pelo privilégio de estar em silêncio. Ainda sou capaz de acompanhar a marcha, mas a artrite piora a cada dia, e caminhar me custa cada vez mais. Quando montamos acampamen- to, você é rápida em me trazer para dentro, aquecer a água e cobrir meus joelhos com compressas quentes. Seu rosto nessas horas não transparece susto nem pena. Apenas a convicção tranquila de estar fazendo a única coisa possível, o que talvez se possa chamar de amor.
Com a piora da artrite, as palavras, que já me eram letais quando faladas, começam a me faltar também enquanto escritas. Meus dedos já não se fecham por completo, e minha destreza se perde com o en- rijecimento que começa a se apoderar das articulações. Defrontado com a hipótese de ter de parar de escrever, penso sem muito interesse nas opções que me restarão para comunicar conceitos complexos, se eles se fizerem necessários. Mas essa necessidade parece cada vez mais improvável. Porque sei que quando eu estiver calado você estará por perto, e saberá o que dizer, mesmo sem precisar fazê-lo.
E enquanto o sol se põe atrás da massa cinza, que em breve se tornará uma nova tempestade de neve, eu contemplo a extensão da planície. Dentre as poucas palavras do vocabulário Skali, não há ne- nhuma que sirva para descrever seu território. Ele está em toda parte, e não é necessário referi-lo; basta aceitar, pois não há nada além. Olho para os Skali, que terminam de preparar o acampamento ao nosso redor, alheios à nossa presença. Vejo o fogo que bruxuleia em nossa tenda, a tênue segurança desse arranjo provisório em meio à estepe intransponível. E sinto que me aproximo de uma espécie de compreensão, mesmo que insuficiente, do sentido desse vertiginoso mergulho em direção ao silêncio.
E enquanto olho as letras cada vez mais deformadas e hesitantes que se acumulam sobre o papel, sei que elas não são capazes de ex- pressar nada disso. Como minha voz, presa entre meu sotaque rudi- mentar e o inglês que começo a esquecer, tampouco seria. Por mais que ambas se esvaiam, porém, sei que guardarei comigo as poucas palavras de que ainda preciso, num vocabulário ainda menor do que o dos Skali. Mas que será suficiente para dar conta do pouco que sei.
À noite, o chefe do clã visita nossa tenda. Inesperadamente, ele faz sinal com a cabeça para que saiamos com ele e o acompanhemos até a borda do acampamento. Ele senta ao nosso lado. Pouco tem- po depois, leva você até um canto reservado, para que possam falar sem que eu os escute. Ele aponta para nossa tenda, para o centro do acampamento, e eu entendo o que ele quer dizer. Não haverá mar- cha amanhã. Ou ao menos não para mim. Os Skali chamam isso de yurfit. Compaixão.
Pouco depois, ele retorna até mim e toca sua mão parruda em minha testa. Em seguida se retira, em silêncio, deixando-nos sozi- nhos em meio à neve. Penso em retornar à tenda, mas de alguma forma compreendo que esse tempo passou, que o que me resta é o frio. Então me deixo repousar lentamente no seu colo, com o bloco de notas em mãos, e o olhar fixo no sorriso que me embala tranqui- lo, sem nada mais que tenha nome ao redor.
O vento sopra forte. Minha mão titubeia, depois escreve algu- mas poucas palavras trôpegas. Por seu sorriso, eu percebo que você ainda é capaz de reconhecê-las. E isso basta.
Ar. Planície. Neve. Inverno. Pele. Calor. Rena. Luz. Leite. Tundra. Chão. Fogo. Tenda. Lenha. Norte. Dor. Alívio. Frio. Corpo. Espaço. Neve. Frio. Pão. Silêncio. Corpo. Frio. Neve. Neve.
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Neve. Neve. Neve. Fim.
Estepe.
Você.