Anna O.

Ricardo Lísias

Artwork by Ifada Nisa

Um

Não é muito justo dizer que a formatura livrou-o completamente do problema da insônia. Às vezes, ele demora muito para dormir ou, mais raramente, termi­na passando a noite em claro. Se tiver algum compro­misso sério para o dia seguinte (aulas na universidade, um paciente famoso ou o aniversário do filho), fecha os olhos, reza três vezes o pai-nosso e começa um exercí­cio que aprendeu alguns anos antes com uma pacien­te maluca. Se você tiver insônia, pode tentar: feche os olhos, imagine-se em um campo muito verde e seja ridículo a ponto de ordenar que os próprios pés durmam. Depois, peça que os joelhos e as coxas adormeçam, em seguida o quadril, a barriga e o resto do tronco. Se, meia hora depois de começar esse ritual patético, sua cabeça ainda não estiver completamente adormecida, desista, não vai dar certo. Por isso, ele se levantou, caminhou em silêncio até a cozinha, voltou nu no meio do caminho, pegou um livro, tentou ler algumas páginas, fechou-o cheio de medo e tédio, admirou a capa discretamente azul, voltou para o quarto, deitou-se novamente e começou a imaginar se a esposa não senti­ria vergonha de dizer por aí que ele é seu marido.

 

Dois

Besteira. Ela sempre teve muito orgulho do lugar de destaque do marido na medicina. Assustou-se um pouco, é verdade, quando soube que ele pretendia ser psiquia­tra. O que tinha mudado na cabeça do rapaz forte e atlé­tico que passou os três primeiros anos da faculdade que­rendo ser o médico da seleção nacional de vôlei?

Sono, muito sono. Mesmo assim ele caminhou com segurança até o antigo orientador. M. E. sabia muito bem o que o seu melhor aluno queria. Quando estendeu as mãos, inclusive, não pôde deixar de sorrir: que coisa, aquele tremor pareceu-lhe o mesmo do dia da defesa da tese de doutorado (aprovada com distinção e louvor e recomendações entusiasmadas para a publicação). O ensaio tentava mostrar que talvez a dor nas pernas e a dificuldade de andar da senhorita Elizabeth von R. não fossem necessariamente um caso de histeria. O resulta­do foi um livro muito discutido, a precoce consagração no meio psiquiátrico e uma enormidade de entrevistas. Mas e Anna O?

M. E. olhou para seu antigo aluno, sorriu mais uma vez e deixou bem claro que, se ele quisesse chorar, fingi­ria que tinham voltado os dois para as vésperas da defesa da tese. Só isso.

 

Três

O antigo orientador ficou em silêncio, observando como o pavilhão dos professores tinha mudado desde a sua aposentadoria. Passou lentamente os olhos pelas plaquetas das portas e percebeu a nova moda dos recém-contratados: estampar a palavra “doutor” antes do nome. Finalmente, os dois, o velho psiquiatra e o seu melhor aluno, agora um dos melhores especialistas do país, entra­ram na copa e, ainda em silêncio, pegaram duas xícaras de café. Ele, antes de colocar açúcar, olhou ao redor. Pro­curava um possível gravador escondido dentro do vaso de flores, da lata de lixo ou até da garrafa térmica. Da garrafa térmica? É, a gente faz de tudo quando está com sono.

Para quebrar o gelo, M. E. resolveu perguntar se, depois de todos aqueles anos, o perfil do cunhado de Elizabeth von R. estava concluído. Mas e Anna O? Ele fez que não com a cabeça, mas se animou a discutir o velho ensaio. O silêncio é a pior arma para combater o sono.

E a vergonha? O psiquiatra achou que alguém se movia por trás do orientador, um aluno, um espião, Anna O e, com um salto, atirou-se sobre o atrevido. Devia estar sonhando, pois tudo que havia ali era uma pilha de cópias xerox. Alunos adoram apostilas, espiões. M. E. entendeu perfeitamente o que estava acontecendo, sorriu outra vez, colocou a mão direita sobre o ombro do antigo aluno, que estava com sono, e pediu calma.

Distinção e louvor.

 

Quatro

No final da tarde, o psiquiatra conferiu a agenda do dia seguinte, pediu que a secretária desmarcasse os dois encontros com os jornalistas (não falaria com a impren­sa) e disse que ficaria estudando até escurecer. Ele queria voltar para casa bem no horário do jogo de basquete do filho no clube do bairro. Será que o garo­to sentiria vergonha do pai?

Tentou ler um pouco, mas o sono embaralhava as linhas e atrapalhava a concentração. Passou os olhos pelas lombadas até achar o volume de capa azul-escura que discutia a conveniência social do termo “loucu­ra.” Mas, do mesmo jeito, não conseguiu reler o artigo sobre política e saúde mental. Enquanto tentava fixar os olhos na fotografia de um hospício chinês, na verdade um campo de concentração para dissidentes do regime, lembrou-se dos tempos de juventude, quando participa­va cheio de vida das passeatas pelo fim dos manicômios.

Em maio de 1968 ele tinha vinte anos.

 

Cinco

Quando chegou na quadra, bastante atrasado, viu um dos rapa­zes fazendo uma cesta impressionante. Localizou o filho um pouco mais atrás. O garoto jogava como armador, uma espécie de estrategista responsável por criar joga­das e facilitar o trabalho dos atacantes do time. O filho acenou e mostrou com as mãos onde sua namorada esta­va. Os dois sempre tinham se dado muito bem, os três.

No entanto, antes de se sentar, o médico viu um outro jogador se contundir e correu até a quadra. Com as mãos, apertou forte o tornozelo machucado, manteve-o na posi­ção correta e garantiu que não tinha sido nada. O filho o olhava cheio de orgulho e ele pôde até, muito claramen­te, ver que o garoto fazia gestos para a namorada.

Que dor, meu Deus.

Depois, passou algum tipo de pomada na perna do rapaz e disse para ele ficar dois dias sem jogar. Aquela par­tida, nunca. Faltavam pouco mais de trinta segundos.

Enquanto o filho se arrumava no vestiário, o médi­co convidou a namorada para tomar um lanche antes de voltar para casa. Quase todo o time foi junto. Os rapa­zes adoravam sair com ele. Em casa, contariam o que ele tinha falado e explicariam que, além de psiquiatria, o cara ainda é bom em torções e quedas no meio do jogo de basquete. A molecada hoje em dia não lê mais jor­nal. O rapaz contundido fez questão de ir junto. Só um pouco, tio.

Foi bom: desde que tinha recebido a notícia de que seria o responsável pelo laudo, não conseguia se distrair. No entanto, teve quase certeza de que alguém o seguia, ele e o filho, no estacionamento. Depois, um carro jogou luz alta sobre eles. Filhos da puta. Deixa disso, pai.

O filho ficou ainda mais espantado quando o pai per­guntou a opinião dele sobre o mundo. O mundo todo?

 

Seis

Quando o telefone tocou, o psiquiatra deu-se conta de que ainda não tinha conseguido dormir. Antes de se levantar, cerrou os olhos míopes para enxergar as horas e balbuciou um palavrão. A esposa deve ter ouvido algu­ma coisa, pois resmungou e virou-se de lado, embaixo do cobertor. Não teve ânimo para afagar com o braço o marido. Se tivesse feito isso, talvez acordasse preo­cupada, pois ele já estava na sala, xingando um pouco mais alto o idiota que, do outro lado da linha, apenas fazia um ruído estranho com a boca. A noite é silencio­sa apenas para os ingênuos. Depois de bater o telefo­ne, sem se preocupar com o barulho, foi até a cozinha, apanhou na geladeira a garrafa de água, que tilintou ao se chocar contra o vidro de chá, e tomou longos goles quase sem sentir o gosto. Da água? A raiva misturava- se ao ódio e ao medo, e por causa desse último foi até o quarto do filho e se espantou ao ver a namorada dor­mindo ao lado do rapaz. Mas, depois da lanchonete, ela não tinha ido para casa?

Esfregou o rosto, como se não tivesse certeza de que ela estava mesmo ali. A garota despertou assustada e virou os belos olhos verdes na direção dele, do pai.

O psiquiatra, o pai, fechou a porta, ainda espanta­do com a beleza da moça, e sentou-se no sofá da sala. Meio machista, sentiu orgulho do filho e, por causa dele, do filho, sem mais nem menos, começou a chorar. Por causa do filho.

 

Sete

Quando chegou ao consultório, apressado porque teria que dar aula na universidade no começo da noite e ainda precisava atender quatro pacientes, a secretária lhe avi­sou que três jornalistas (dois da Espanha . . . ) tinham tele­fonado para agendar entrevistas. Ele reafirmou que não falaria com a imprensa e quase desmaiou de susto quan­do ela avisou que, logo cedo, três rapazes tinham vindo arrumar a linha telefônica. Mas quem foi que chamou? Furioso, o psiquiatra fuçou o consultório inteiro, os can­tos todos, o banheiro, a pequena cozinha, as gavetas da espantada secretária e os fundos dos tapetes das três salas. Nem as latas de lixo—principalmente elas—escaparam. Não encontrou, porém, o menor sinal de grampo. Na mesma hora, ordenou que ela desmarcasse, pelo celular, por favor, todas as consultas até o dia em que ele fosse passar a maldita visita. Telefonou para a esposa de um orelhão para saber se aquele engraçadinho continuava ligando. Ela respondeu que não, mas aca­bou piorando a situação ao contar que uma emissora de televisão tinha telefonado para o filho, perguntando se o garoto não poderia descrever as convicções políticas e a personalidade do pai. Falavam espanhol? Ela não sabia dizer, mas acrescentou que havia chegado também uma carta sem indicação de remetente.

O psiquiatra foi aos pulos até o estacionamento e saiu desesperado em direção à sua casa. Duas quadras depois, bateu em um carro preto que tinha todo o jeito de ser um veículo oficial.

 

Oito

Por um instante, pensou em não parar, ignorar o acidente e continuar voltando para casa. Mas enquan­to se decidia entre colocar o pé no acelerador ou no breque, veio-lhe à cabeça a imagem do dia da formatu­ra, quando sua mãe quase morreu de tanto chorar. No momento do juramento, em que todos devem se levan­tar, ela não aguentou e caiu na cadeira. Nenhum dos dois carros tinha sido muito prejudicado. O outro, do qual saíram duas meninas com jeito de sem-vergonha, acabou ficando sem uma das lanternas traseiras. De cara, ele viu que as duas estavam chapadas. A polícia apareceu muito rapidamente, mas o psiquiatra mostrou a credencial de médico do governo e pediu para que o guarda liberasse as duas também. Nenhuma delas se parecia com a namorada do filho. Excelente. Talvez um dos guardas o tenha reconhecido, pois não é comum que a polícia libere assim com tanta velocidade os envolvidos em um acidente. Mas foi coisa leve.

Em casa, ele se enfureceu outra vez ao abrir o enve­lope sem remetente e ler, colado em uma folha de sulfi­te, o nome Anna O. formado a partir de cinco letras de jornal. Anna O. A esposa, que agora estava começan­do a ficar assustada, perguntou se as ligações mudas tinham alguma coisa a ver com isso e, sem esperar res­posta, resmungou, questionando a veracidade da inde­pendência que o governo tinha garantido para o laudo do marido. Ele respondeu que só poderia saber no dia da visita ao general. De qualquer maneira, até ali o governo não tinha feito o menor contato. Aquilo era coisa de algum palhaço.

 

Nove

De um jeito ou de outro, assim que o filho chegou da faculdade, eles fizeram as malas e chamaram um táxi para ir para a casa da avó, que morava a umas duas horas dali. O casal tinha resolvido fazer isso para afastar o filho do burburinho que certamente a imprensa cau­saria e, essa é a verdade, por segurança. O rapaz passou o telefone da avó para a namorada e os dois prometeram se encontrar no fim de semana. Quando o taxista cha­mou pelo interfone, o psiquiatra julgou que tinha sota­que castelhano e, desconfiado, dispensou-o. Ele mesmo levaria a família para o interior.

Será que teriam vergonha?

Na volta, já de madrugada, resolveu desviar um pouco o caminho e passar na casa de M. E. que, há décadas, nunca dormia antes das quatro horas da manhã. O velho abriu a porta e ficou sinceramente satisfeito com a visita do ex-aluno. Os dois sentaram-se na cozinha e puderam conversar longamente sobre o laudo e, como não pode­ria deixar de ser, Anna O.

Já tinha amanhecido quando deixaram de lado a his­tória do pudim queimado. Lendo alguns relatórios, o psi­quiatra soube que o general sentia, às vezes por várias horas seguidas, um forte cheiro de pudim queimado. Nem M. E. nem ele, porém, quiseram citar a palavra “tortura.” Mas e Anna O?

 

Dez

Quando chegou em casa, apesar do sono quase desesperador, o psiquiatra começou a se incomodar com o silêncio. Na cozinha, procurou fazer muito barulho para descongelar o prato que a esposa tinha deixado no con­gelador. A comida era suficiente para dois, mas ele devo­rou tudo sozinho, crente que a barriga estufada o ajuda­ria a adormecer. Que nada.

Na janela de casa, resolveu treinar os pontos cardeais e procurou localizar o Norte, justamente o lugar onde se localizava o hospital. Mas àquela hora as luzes chama­vam muito mais a atenção do que a ingênua rosa-dos-ventos que ele estava tentando desenhar na cabeça. No entanto, também elas ajudaram a aumentar seu deses­pero, já que depois de um instante de admiração ele não sabia dizer quais as luzes que de fato correspondiam a uma lâmpada, quais poderiam estar vindo daquela rara noite estrelada e quais eram produto da insônia que o estava enlouquecendo.

Preocupado com isso, afastou-se da janela e notou um envelope na porta de serviço. Esse tinha remetente: vinha do setor de diagnóstico psiquiátrico do Hospital Central, designado pelo Ministério do Interior como o responsável pelos exames. Quando foi apanhá-lo, andan­do quase em câmera lenta por causa do sono, bateu com força a perna na mesinha da sala e, como estava mesmo sozinho, finalmente chorou.

 

Onze

Talvez ele tenha dormido um pouco no sofá da sala mesmo. O envelope, porém, o médico foi abrir apenas no dia seguinte, em um local inesperado: o zoológico. Sentado em frente ao espaço dos orangotangos, ainda antes de ler os primeiros laudos, telefonou do celu­lar para a esposa que aparentemente estava acordan­do. Quase aos berros, explicou que não estava falando daquele jeito por causa do sono, mas sim porque dois (ou até mais) orangotangos estavam brigando na copa da árvore ali ao lado por causa de uma fêmea resisten­te. A propósito, uma bobagem, pois independentemente de quem saísse vencedor, ela copularia exclusivamente com o macho de sua preferência.

Segundo os laudos prévios, o general sentia muita dor ao andar e cansava-se rapidamente. Seu compor­tamento era calmo, amistoso até, mas predominava a “belle indifférence dos histéricos.” Com algum estímulo, conseguia lembrar-se de certos momentos do passado recente. Mas não se recordava do que fosse mais dis­tante. Reconhecia os parentes depois de um curto inter­valo de tempo (alguns minutos) e apresentava ligeiros intervalos de depressão. Esses últimos, porém, tinham desaparecido nos últimos dias. Recorrente mesmo era o cheiro de pudim queimado.

E a vergonha.

Um dos orangotangos pulou da copa da árvore para o chão repentinamente, mas o que assustou mesmo o psiquiatra foi a assinatura do laudo: embaixo dos garran­chos constava a patente militar do médico que tinha escrito o documento.

 

Doze

Pela primeira vez desde que tinha sido designado para assinar o laudo, o psiquiatra abriu os jornais. Passou os olhos pelas longas páginas sobre o caso, deteve-se um instante em uma notícia sobre os problemas diplomáti­cos que o general estava causando e perdeu a paciência. Com um golpe, jogou todos no mesmo latão de lixo da universidade e foi até a secretaria buscar a correspon­dência. Surpreendentemente, encontrou um telegrama do governo em que o ministro em pessoa lhe avisava o dia e o horário da visita. O psiquiatra deveria escrever e assinar o laudo na folha que um dos enfermeiros lhe entregaria na hora. Mas por que tinham enviado aquilo para a universidade?

Na porta da sala de aula, um jornalista insistiu muito para que ele desse uma declaração. Podia ser uma frase. Inspirado por um lampejo de bom humor, ele deixou as coisas na mesa, olhou para a sala repleta de alunos e finalmente virou-se para o repórter:

Mas e Anna O?

Os alunos caíram na gargalhada e, na mesma hora, resolveram aplaudi-lo. Ele, por outro lado, levou tudo na brincadeira, até que, no fundo da sala, enxergou M. E. sentado em uma das cadeiras próximas à janela. O anti­go orientador também estava aplaudindo, morrendo de rir com a história.

 

Treze

Mas tê-lo visto deixou o professor emocionado e, outra vez, agora na frente de todo mundo, ele começou a chorar. Os alunos ficaram quietos, e justamente o mais bagunceiro da sala ofereceu-se para buscar um copo de água. Antes que o professor pudesse responder, uma confusão tomou conta do corredor, pois dois alunos saíram da sala para expulsar o jornalista, certos de que o professor tinha ficado incomodado com a inconveniência dele. Quem é que pode trabalhar assim? Logo, os seguranças controlaram a bagunça e a aula pôde finalmente começar.

O psiquiatra, antes de tudo, avisou que não pode­ria dar a aula seguinte e apontou para M. E., que gen­tilmente tinha se oferecido para substituí-lo. Pouco depois, o chefe do departamento abriu a porta e ace­nou, explicando que precisava conversar urgentemente com ele. Aproveitando o clima de desordem, os alunos resolveram vaiar abertamente o intrometido.

Do lado de fora, o psiquiatra soube pelo colega (um idiota que parecia um bacalhau recém-saído do mar) que vários jornalistas estavam pedindo informações sobre sua vida profissional, as linhas de pesquisa, os cur­sos já dados e suas possíveis filiações. Ele queria saber se podia passar adiante os dados. Na verdade, o chefe do departamento estava querendo mesmo era aparecer no jornal.

 

Catorze

O psiquiatra recusou, reafirmando que não queria nada com a imprensa. Como a sala estava completamen­te afoita, a aula foi cancelada. Enquanto saíam, alguns alunos acenaram para o professor, e dois deles, um casal muito simpático, desejaram boa sorte. Uma outra, mor­rendo de vergonha, achou coragem em algum lugar para dizer que tinha muito orgulho de ser sua aluna. Aparen­temente, ao menos os alunos não sentiriam vergonha. M. E. esperou no fundo da sala e, quando o ex-aluno se aproximou, disse que, naquele caso, talvez ele devesse tomar, sim, alguma coisa para dormir.

Ele resistiu ao remédio por mais duas noites, vagan­do pela casa, tomando litros de água e xingando aque­le palhaço que não falava nada do outro lado da linha. Na terceira noite, porém, atirou o aparelho de telefone na parede. O barulho do choque ecoou dentro de sua cabeça e ele quase desmaiou de sono. Mesmo assim não conseguia dormir. O médico vedou as portas com jornal, trancou todas as janelas e avisou a secretária (sempre pelo celular) que ele não atenderia ninguém até a sema­na seguinte: depois de assinar o laudo, iria direto encon­trar a esposa e o filho.

Depois, pegou um comprimido, cuidadosamente o dividiu ao meio e engoliu uma das partes. Enquanto se deitava, repetiu a oração que fazia todas as noites quan­do era criança, Por favor, Jesus, faça que eu não sonhe e nem pesadelo.

 

Quinze

Antes de entrar para passar a visita e assinar o laudo, ele se encontrou no corredor do hospital com o militar que tinha escrito o documento anterior. O psiquiatra fingiu que estava ouvindo o que o outro falava enquanto andavam até a sala e, quando viu a mão do colega esten­dida para cumprimentá-lo na frente dos sentinelas, teve vontade de quebrar o nariz do idiota. Mas não fez isso. Quando entrou, abriu um pouco as cortinas e pediu para o general se sentar. O velho, porém, alegou que não conseguia e, cheio de arrogância, disse que preferia ser atendido deitado mesmo. O psiquiatra estava cansa­do demais para discutir e notou como o general gosta­va de dar ordens. Algumas pessoas não aprendem nem prostradas. Apalpou-lhe os braços e as pernas e ouviu um ruído agudo de dor. Além de tudo, a voz dele era irri­tante. Calmo, ouviu as mesmas queixas que estavam no documento militar e disse que tentaria fazer o general lembrar-se de algo do passado pressionando-lhe a testa. O velho não gostou, mas permitiu e reafirmou, mesmo depois da intensa pressão, que não se lembrava de nada. O psiquiatra pediu-lhe para descrever as imagens que surgiam na vista do general instantes depois da pressão, mas o paciente fez um barulho estranho com a boca e disse que há muito tempo não enxergava bem. Tinha medo, inclusive, de terminar cego. Que vergonha.

Já estava na hora de tudo aquilo terminar. O psiquia­tra cobriu o general, fez que sim respondendo a alguma bobagem que ele estava falando, abriu o envelope com o papel em que deveria escrever o laudo, assinou antes e, sentado à minúscula mesa, escreveu em letras redondas e muito compreensíveis apenas uma linha:

Augusto Pinochet Ugarte não apresenta boas condições mentais.

O general Pinochet, por outro lado, é um filho da puta.