A Prova dos Pássaros
Lídia Jorge
O Professor viu com desgosto a rapariga aproximar-se empurrando aquele terrível carrinho. Na verdade, alguém da família do bebé—um homem por certo—havia aplicado uma espécie de traga-areia à frente das rodas, o que permitia que ela o fizesse deslizar com extrema facilidade mesmo nos locais ondulados. Sobre o assento do carrinho, um antigo modelo que deveria ter pertencido a um outro bebé agora já homem, a criança de tenra idade abanava a cabeça com os olhos fechados. Mãe e criança ainda exalavam um cheiro repelente a parto c amamentação. Ora ele que tinha posto os óculos de ver ao longe para contar os pássaros, sentindo aquele cheiro sanguíneo a carne tenra, era obrigado a parar. E sempre que parava, pensava para si—Nunca farás a prova.
E no entanto, o Professor tinha-se dado ao trabalho, dois meses antes, de tomar assento num barulhento autocarro onde passavam filmes americanos, a fim de poder ele mesmo escolher um local sossegado onde pudesse executar essa prova. Durante a viagem, que afinal demoraria muito mais tempo do que constava do horário, tivera a oportunidade de perguntar a um homem, que pela fala lhe parecia ser da região para onde se dirigia, que praia lhe aconselhava para poder observar pássaros. O homem tinha a tez muito escura, e apesar de vestir um blusão em cujas costas se lia uma palavra em sueco, estava sulcado de infinitas rugas. «Fugiram todos»—havia o homem dito, apanhado pelo espírito de tragédia que em determinada altura da vida assalta certo tipo de pessoas. Mas o Professor acabara por encontrar um quarto tranquilo, diante duma pequena praia, onde lhe fora assegurado que ninguém o incomodaria, e donde poderia ver vários géneros de pássaros em bandos, picando restos de peixe, assim que o Verão chegasse.
«Em bandos?»—havia perguntado, sentindo que estava a ser servido por um bom instinto.
«Nuvens deles!»
Ora a palavra bando revestia-se de grande importância para o Professor. Afinal, ele procurava aquele lugar determinado, porque havia pensado que chegara a altura de fazer a prova. No Inverno anterior, alguém—um aluno por certo—lhe enviara a cópia duma página de que só depois havia identificado a autoria e proveniência. Ocupava escassas doze linhas, e apesar de não possuir uma boa memória, no mesmo dia ele havia-as aprendido de cor. Chamava-se Argumentum Omithologicum e abria com uma frase cuja música não lhe saía daquela parte do pensamento, onde as ideias perdem o sentido, para se transformarem em impulso. Era uma divulgação de Borges—«Fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. A visão dura um segundo ou talvez menos; não sei quantos pássaros vi. Era definido ou indefinido o seu número?»—repetia desde então, de olhos fechados. Mas as linhas determinantes eram as que melhor dizia em voz alta—«Se Deus existe, o número é definido, porque Deus sabe quantos pássaros vi. Se Deus não existe, o número é indefinido, pois ninguém conhecerá ao certo a sua conta . . . » Ora o Professor queria ser capaz de contar um número inteiro de pássaros voando, para demonstrar o contrário do que sempre fizera por outros argumentos, tendo demonstrado até então, com imenso furor, que Deus não existia. Para mudar tão radicalmente de opinião, precisava de tempo, dum bom bando e de silêncio à sua volta, embora do silêncio imaginado sempre constasse o repetido barulho do mar. Já não era um homem novo. Poder erguer o dedo e contar um, dois, nove, dez, doze pássaros, um número determinado e finite deles, tinha-se transformado numa questão de princípio. Por isso, havia poupado arduamente durante três estações, e feito a viagem de ida e volta na bruta camioneta, exactamente para poder fazer a prova, durante uma tarde em que estivesse só na praia, com o Sol a inclinar-se no horizonte. O seu pensamento era fixo. Encontrar-se-ia de calças arregaçadas junto à água, um bando passaria no sentido do poente, e ele iria contar os animais um a um, entrando, desse modo simbólico, na ciência oculta dos números inteiros de Deus. O número seria definido. Esse iria ser o momento mais importante da sua vida. E na sua ideia, que tinha alguma coisa de obsessivo e amoroso como se aparentado com um beijo projectado no futuro, sempre estaria só com o seu pensamento, sem a presença de mais ninguém. Quando subisse na direcção da casa onde alugara o quarto, o Professor contava então ser outro homem. E no entanto, passado quase um mês de estadia, ainda não fora possível atingir o seu fim.
Ali estava a areia, e ali o mar. Ali estava a tarde e os bandos de pássaros, que nem sabia se eram pombas, se gaivotas, se garças, se outra espécie qualquer. Aliás, os nomes não lhe interessavam. Mas ao contrário do que lhe for a prometido pela criatura que lhe alugara a parte de casa, veraneantes que sobejavam de outras praias ocupavam a areia durante o dia, e muitos aí ficavam até ser noite. Além do mais, vinham carregados de objectos barulhentos, como se tivessem concentrado a mecânica e a tecnologia em seu redor com medo de se perderem num deserto qualquer que temiam atravessar. Tudo em seu redor piscava e rugia. E quando esse furor se escoava ao fim do dia pela ligeira encosta, por infelicidade, descia a rapariga com o bebé, deitado no carrinho traga-areia. A sua figura, cuja carne acabara de ser rasgada pela maternidade, interpondo-se entre ele e os pássaros, impedia-o de se concentrar. O bando passava, ele começava a contar Um, dois, três, quatro . . . mas quando atingia a quinta criatura, a figura da rapariga, empurrando a criança, intrometia-se desesperadamente. E aquele era o seu antepenúltimo dia. Pela centésima vez, um belo bando acabava de se lhe escapar. Ah! Se essa criatura pudesse adivinhar o mal que lhe causava! Para que ela voltasse para trás com aquele carrinho, o que não daria!—O Professor tomou-se de coragem, abandonou a cadeira de lona na areia, e num impulso, ditado sem dúvida pela determinação que a vontade sugere à beira da perda, começou a caminhar na direcção da rapariga. Só vagamente tinha consciência de que a sua intromissão se assemelhava à dum estúpido. Começou por sorrir na direcção do bebé. Apesar de tudo, era difícil falar—«Sabe, precisava que uma tarde a senhora não viesse aqui com o seu carrinho . . . »
Mas aí a rapariga colocou-se à frente do objecto. Os seus olhos ficaram com um brilho amarelo, olhando em frente, imóvel, como o das lobas.
«Pelo amor de Deus, não interprete errado!»—disse o Professor. «Trata-se dum problema muito pessoal. Precisava de ficar sozinho na praia, uma tarde só que fosse, e não consigo. Mal aquela gente parte, chega você. Sou um estudioso, queria contar os pássaros durante o voo . . . »
À medida que falava, ia levantando a voz, e a sensação vaga de que poderia parecer estúpido desvanecia-se. Por certo que uma mulher, que acabava de dar à luz, iria compreender que um homem pudesse desejar contar de forma precisa as unidades exactas dum bando de pássaros. Mas a rapariga, assustada, puxou de tal modo o carrinho na direcção das casas que a criança se pôs a vagir. O coração do Professor contraiu-se de desgosto. «Espere, espere! Você nem imagina como eu seria capaz de a recompensar se amanhã você não viesse». E procurando barrar-lhe o caminho—«Escureceu de todo, os bichos amalharam-se. Como posso contá-los em bando? Como posso?»—ainda disse. Mas agora ela já ia longe, empurrando o seu fardo rolante.
Naturalmente, o Professor foi assaltado nessa noite por uma longa insónia. Não que não pegasse no sono, porém, mal adormecia, os pássaros misturavam-se numa nuvem indistinta, empurrados pelo ruído dum carro. «Não conseguirei»—pensava, alagado em suor. Mas no dia seguinte, quando a multidão de veraneantes começou a debandada com suas cestas e caixas de ruído, deixou-se invadir por um raio de esperança. «Talvez se tenha assustado e não venha hoje»—pensava. A rapariga, contudo, não deveria ser pessoa para se assustar por tão pouco. A fila começava agora a desviar-se da passadeira de tábua, exactamente porque o carrinho do bebé começava a descer. Aliás, de forma inesperada, a rapariga, cujos seios inchados deveriam estar cheios de leite, abandonou o trilho, abeirando-se da cadeira de lona onde o Professor se encontrava. Os seus olhos haviam perdido o amarelo do dia anterior.
«Há uma hipótese de eu não vir passear o bebé, mas para isso teria de falar com o meu marido . . . »
O Professor era uma pessoa educada. Tinha-se levantado da cadeira, ficando a olhar, incrédulo, para o rosto da rapariga.
«Se eu fosse ao senhor, até ia já. Daqui a meia hora escurece outra vez, e nem eu subo nem você conta os pássaros. Se é isso que pretende fazer».
«Sim, é isso mesmo. Trata-se duma contagem muito importante. Ah! Nem imagina como é importante!»
«Isso agora é consigo»—E retirando uma das mãos do guiador do carrinho que parecia jamais querer largar, indicou o pequeno tasco ao fundo, aberto no paredão, incitando-o a que o procurasse. Na verdade, o marido da rapariga parecia esperá-lo, em pé, atrás do balcão que servia a praia. A debandada vespertina de toda aquela gente nómada deixará o recinto deserto. Era um mocetão moreno, de bigode preto. Ao vê-lo, parou de mexer nas vasilhas e foi direito ao assunto.
«Ainda bem que veio. Disse-me a mulher que você pretende ficar sozinho na praia . . . »—E revolvendo uma gaveta, retirou lá de dentro um papel onde estava escrita uma palavra. O mocetão começou a ler com dificuldade o que lá estava escrito. «Você é então um ornitólogo?»
«Não sou, mas tanto faz»—respondeu o Professor, cheio de esperança.
«Pois se é ou não, é lá consigo. Tudo o que preciso saber é quanto dá para que a rapariga volte. A saúde do meu filho tem um preço. Quanto paga?»
«Quanto pede?»
«Eu diria que o equivalente a três noites de alojamento . . . »
O Professor começou a ver a tarde esvair-se.
«Três noites de alojamento para que a sua mulher, uma vez só, me deixe lá em baixo sozinho? Ainda se fosse o equivalente a uma noite, mas três . . . Olhe que três noites é um preço muito alto!»—disse o Professor, e percebendo que tudo o que pudesse acrescentar aumentaria a sensação de que estava a comportar-se como um homem louco, abandonou a tasca vazia onde a luz do crepúsculo entrava às tiras pela janela. Em baixo, a mulher em pós-puerpério empurrava afanosamente o carrinho junto à água. A atmosfera era clara, e no céu não havia um único pássaro. Quando houve, os seus gritos passaram longe e o bando fez uma curva invertida no ar, como um avião esparso numa manobra de fuga. Depois escureceu. «Não é desta vez que consigo contá-los. Talvez nunca. Talvez eu deva para sempre imaginar o número indefinido. Isto é, tenho pensado certo e tenho ensinado certo, pois Deus não existe. E se existe, é como se não existisse, porque não se deixa contar para não se mostrar finito. Mas um Deus infinito que foge da vista dos que o buscam confunde- se com a busca. Não existe»—assim pensava o Professor, subindo a ligeira rampa de areia, transpirado, com a cadeira e a toalha às costas. E durante um momento, hesitou. Na verdade, não seria um exagero procurar a circunstância ideal em que viesse a contar os pássaros? Pois porque haveria de existir Deus se o número contado fosse finito, e não ter existência se o número fosse infinito? O Argumentum Ornithologicum, escrito pelo poeta argentino, bem até que poderia conter um desafio, mas porque conteria um método? Porquê? Não se trataria apenas duma simples aporia destinada mais a encantar do que a convencer? O que ganharia o discernimento se, certo dia, sentado na praia, viesse a contar, um a um, vinte ou trinta pássaros? Suavemente, como quem embrulha a última franja dum desejo, o Professor deixou que caísse, sobre o telhado da casa onde se havia hospedado, a penúltima noite do Verão.
Então, no último dia, desceu à praia e ficou a ver repetir-se o mesmo andamento, o mesmo ruído, o mesmo bulício que afugentava as aves de cujo número tinha desistido. «Uma causa estúpida»—pensou. «Enveredei por uma demonstração errada. Uma demonstração que não só me ficou muito cara, como ainda poderia ter ficado mais, se acaso me tivesse deixado levar pela ganância daquele lorpa da tasca. «Ao que chegámos!»—ia pensando, enquanto caía a última tarde, e a sua vista não se desprendia do caminho das tábuas. Fazia bem não se desprender—As rodas traga-areia traziam, mais uma vez, a criatura diminuta envolvida em panos, e atrás dela a rapariga que cheirava a sangue e a leite. Rolavam os três na direcção da sua cadeira. Ao aproximar-se, a rapariga parecia penalizada. Os seus olhos estavam mais escuros e moviam-se agora duma outra forma. Também o carrinho. Já não o escondia, antes o expunha. E embora o bebé dormisse com os punhos junto das orelhas, parada, ela movia a pega como se o quisesse adormecer duas vezes. O bebé ia e vinha diante dos olhos do Professor. A rapariga tinha-se sentado na areia.
—«Desistiu dos pássaros . . . »—disse ela. «Bem vejo que desistiu. E pensar que, por mim, o senhor ficava sozinho com eles! Mas está lá em casa o meu marido. Que desculpa haveria de lhe dar?»—Ela olhava para trás. A porta do tasco metido no paredão encontrava-se aberta. A rapariga deveria estar cansada, porque não se movia. Tinha escondido as pernas debaixo da saia, e de vez em quando o seu olhar roçava de novo o amarelo. Ao Professor chegava aquele cheiro a bebé que o estonteava e o levava para longe. Sobretudo, quando a rapariga o retirou da almofada e o colocou no colo. Ela desapertou o vestido e escondeu a face da criança na carne do seio. A última onda descia, a praia alongava-se. Subitamente, uns pássaros maiores que carriças e menores que gaivotas começaram a andar junto à onda, e ignorando a presença humana puseram-se a caminhar na sua direcção. Na verdade, só o pulso do bebé, na ânsia de se alimentar, se movia. O Professor colocou os óculos de ver longe. Eram nove, os pássaros.
«Pássaros, Professor!»—disse a rapariga, soltando um grito.
Encandeados pela barra vermelha do sol-posto, colaram-se à areia e depois levantaram voo. As penas brancas luziam. Os pássaros desenharam várias voltas como se pescassem alguma coisa no ar. O Professor não poderia contá-los no voo se não os tivesse contado em terra. Mas porque os tinha contado, sabia finitamente quantos eram. «Um, dois, três, seis, sete, nove . . . »—contava o Professor, invadido por intensa alegria. «Pois finalmente contei nove . . . »—murmurou ele.
Murmurou várias vezes. A rapariga colocou a criança na almofada e começou a subir demasiado devagar o trilho de tábua. Mas ele não podia dizer-lhe adeus. Não tinha idade para comprimi-la contra si, sem lhe transmitir a fragilidade da sua prova.
E no entanto, o Professor tinha-se dado ao trabalho, dois meses antes, de tomar assento num barulhento autocarro onde passavam filmes americanos, a fim de poder ele mesmo escolher um local sossegado onde pudesse executar essa prova. Durante a viagem, que afinal demoraria muito mais tempo do que constava do horário, tivera a oportunidade de perguntar a um homem, que pela fala lhe parecia ser da região para onde se dirigia, que praia lhe aconselhava para poder observar pássaros. O homem tinha a tez muito escura, e apesar de vestir um blusão em cujas costas se lia uma palavra em sueco, estava sulcado de infinitas rugas. «Fugiram todos»—havia o homem dito, apanhado pelo espírito de tragédia que em determinada altura da vida assalta certo tipo de pessoas. Mas o Professor acabara por encontrar um quarto tranquilo, diante duma pequena praia, onde lhe fora assegurado que ninguém o incomodaria, e donde poderia ver vários géneros de pássaros em bandos, picando restos de peixe, assim que o Verão chegasse.
«Em bandos?»—havia perguntado, sentindo que estava a ser servido por um bom instinto.
«Nuvens deles!»
Ora a palavra bando revestia-se de grande importância para o Professor. Afinal, ele procurava aquele lugar determinado, porque havia pensado que chegara a altura de fazer a prova. No Inverno anterior, alguém—um aluno por certo—lhe enviara a cópia duma página de que só depois havia identificado a autoria e proveniência. Ocupava escassas doze linhas, e apesar de não possuir uma boa memória, no mesmo dia ele havia-as aprendido de cor. Chamava-se Argumentum Omithologicum e abria com uma frase cuja música não lhe saía daquela parte do pensamento, onde as ideias perdem o sentido, para se transformarem em impulso. Era uma divulgação de Borges—«Fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. A visão dura um segundo ou talvez menos; não sei quantos pássaros vi. Era definido ou indefinido o seu número?»—repetia desde então, de olhos fechados. Mas as linhas determinantes eram as que melhor dizia em voz alta—«Se Deus existe, o número é definido, porque Deus sabe quantos pássaros vi. Se Deus não existe, o número é indefinido, pois ninguém conhecerá ao certo a sua conta . . . » Ora o Professor queria ser capaz de contar um número inteiro de pássaros voando, para demonstrar o contrário do que sempre fizera por outros argumentos, tendo demonstrado até então, com imenso furor, que Deus não existia. Para mudar tão radicalmente de opinião, precisava de tempo, dum bom bando e de silêncio à sua volta, embora do silêncio imaginado sempre constasse o repetido barulho do mar. Já não era um homem novo. Poder erguer o dedo e contar um, dois, nove, dez, doze pássaros, um número determinado e finite deles, tinha-se transformado numa questão de princípio. Por isso, havia poupado arduamente durante três estações, e feito a viagem de ida e volta na bruta camioneta, exactamente para poder fazer a prova, durante uma tarde em que estivesse só na praia, com o Sol a inclinar-se no horizonte. O seu pensamento era fixo. Encontrar-se-ia de calças arregaçadas junto à água, um bando passaria no sentido do poente, e ele iria contar os animais um a um, entrando, desse modo simbólico, na ciência oculta dos números inteiros de Deus. O número seria definido. Esse iria ser o momento mais importante da sua vida. E na sua ideia, que tinha alguma coisa de obsessivo e amoroso como se aparentado com um beijo projectado no futuro, sempre estaria só com o seu pensamento, sem a presença de mais ninguém. Quando subisse na direcção da casa onde alugara o quarto, o Professor contava então ser outro homem. E no entanto, passado quase um mês de estadia, ainda não fora possível atingir o seu fim.
Ali estava a areia, e ali o mar. Ali estava a tarde e os bandos de pássaros, que nem sabia se eram pombas, se gaivotas, se garças, se outra espécie qualquer. Aliás, os nomes não lhe interessavam. Mas ao contrário do que lhe for a prometido pela criatura que lhe alugara a parte de casa, veraneantes que sobejavam de outras praias ocupavam a areia durante o dia, e muitos aí ficavam até ser noite. Além do mais, vinham carregados de objectos barulhentos, como se tivessem concentrado a mecânica e a tecnologia em seu redor com medo de se perderem num deserto qualquer que temiam atravessar. Tudo em seu redor piscava e rugia. E quando esse furor se escoava ao fim do dia pela ligeira encosta, por infelicidade, descia a rapariga com o bebé, deitado no carrinho traga-areia. A sua figura, cuja carne acabara de ser rasgada pela maternidade, interpondo-se entre ele e os pássaros, impedia-o de se concentrar. O bando passava, ele começava a contar Um, dois, três, quatro . . . mas quando atingia a quinta criatura, a figura da rapariga, empurrando a criança, intrometia-se desesperadamente. E aquele era o seu antepenúltimo dia. Pela centésima vez, um belo bando acabava de se lhe escapar. Ah! Se essa criatura pudesse adivinhar o mal que lhe causava! Para que ela voltasse para trás com aquele carrinho, o que não daria!—O Professor tomou-se de coragem, abandonou a cadeira de lona na areia, e num impulso, ditado sem dúvida pela determinação que a vontade sugere à beira da perda, começou a caminhar na direcção da rapariga. Só vagamente tinha consciência de que a sua intromissão se assemelhava à dum estúpido. Começou por sorrir na direcção do bebé. Apesar de tudo, era difícil falar—«Sabe, precisava que uma tarde a senhora não viesse aqui com o seu carrinho . . . »
Mas aí a rapariga colocou-se à frente do objecto. Os seus olhos ficaram com um brilho amarelo, olhando em frente, imóvel, como o das lobas.
«Pelo amor de Deus, não interprete errado!»—disse o Professor. «Trata-se dum problema muito pessoal. Precisava de ficar sozinho na praia, uma tarde só que fosse, e não consigo. Mal aquela gente parte, chega você. Sou um estudioso, queria contar os pássaros durante o voo . . . »
À medida que falava, ia levantando a voz, e a sensação vaga de que poderia parecer estúpido desvanecia-se. Por certo que uma mulher, que acabava de dar à luz, iria compreender que um homem pudesse desejar contar de forma precisa as unidades exactas dum bando de pássaros. Mas a rapariga, assustada, puxou de tal modo o carrinho na direcção das casas que a criança se pôs a vagir. O coração do Professor contraiu-se de desgosto. «Espere, espere! Você nem imagina como eu seria capaz de a recompensar se amanhã você não viesse». E procurando barrar-lhe o caminho—«Escureceu de todo, os bichos amalharam-se. Como posso contá-los em bando? Como posso?»—ainda disse. Mas agora ela já ia longe, empurrando o seu fardo rolante.
Naturalmente, o Professor foi assaltado nessa noite por uma longa insónia. Não que não pegasse no sono, porém, mal adormecia, os pássaros misturavam-se numa nuvem indistinta, empurrados pelo ruído dum carro. «Não conseguirei»—pensava, alagado em suor. Mas no dia seguinte, quando a multidão de veraneantes começou a debandada com suas cestas e caixas de ruído, deixou-se invadir por um raio de esperança. «Talvez se tenha assustado e não venha hoje»—pensava. A rapariga, contudo, não deveria ser pessoa para se assustar por tão pouco. A fila começava agora a desviar-se da passadeira de tábua, exactamente porque o carrinho do bebé começava a descer. Aliás, de forma inesperada, a rapariga, cujos seios inchados deveriam estar cheios de leite, abandonou o trilho, abeirando-se da cadeira de lona onde o Professor se encontrava. Os seus olhos haviam perdido o amarelo do dia anterior.
«Há uma hipótese de eu não vir passear o bebé, mas para isso teria de falar com o meu marido . . . »
O Professor era uma pessoa educada. Tinha-se levantado da cadeira, ficando a olhar, incrédulo, para o rosto da rapariga.
«Se eu fosse ao senhor, até ia já. Daqui a meia hora escurece outra vez, e nem eu subo nem você conta os pássaros. Se é isso que pretende fazer».
«Sim, é isso mesmo. Trata-se duma contagem muito importante. Ah! Nem imagina como é importante!»
«Isso agora é consigo»—E retirando uma das mãos do guiador do carrinho que parecia jamais querer largar, indicou o pequeno tasco ao fundo, aberto no paredão, incitando-o a que o procurasse. Na verdade, o marido da rapariga parecia esperá-lo, em pé, atrás do balcão que servia a praia. A debandada vespertina de toda aquela gente nómada deixará o recinto deserto. Era um mocetão moreno, de bigode preto. Ao vê-lo, parou de mexer nas vasilhas e foi direito ao assunto.
«Ainda bem que veio. Disse-me a mulher que você pretende ficar sozinho na praia . . . »—E revolvendo uma gaveta, retirou lá de dentro um papel onde estava escrita uma palavra. O mocetão começou a ler com dificuldade o que lá estava escrito. «Você é então um ornitólogo?»
«Não sou, mas tanto faz»—respondeu o Professor, cheio de esperança.
«Pois se é ou não, é lá consigo. Tudo o que preciso saber é quanto dá para que a rapariga volte. A saúde do meu filho tem um preço. Quanto paga?»
«Quanto pede?»
«Eu diria que o equivalente a três noites de alojamento . . . »
O Professor começou a ver a tarde esvair-se.
«Três noites de alojamento para que a sua mulher, uma vez só, me deixe lá em baixo sozinho? Ainda se fosse o equivalente a uma noite, mas três . . . Olhe que três noites é um preço muito alto!»—disse o Professor, e percebendo que tudo o que pudesse acrescentar aumentaria a sensação de que estava a comportar-se como um homem louco, abandonou a tasca vazia onde a luz do crepúsculo entrava às tiras pela janela. Em baixo, a mulher em pós-puerpério empurrava afanosamente o carrinho junto à água. A atmosfera era clara, e no céu não havia um único pássaro. Quando houve, os seus gritos passaram longe e o bando fez uma curva invertida no ar, como um avião esparso numa manobra de fuga. Depois escureceu. «Não é desta vez que consigo contá-los. Talvez nunca. Talvez eu deva para sempre imaginar o número indefinido. Isto é, tenho pensado certo e tenho ensinado certo, pois Deus não existe. E se existe, é como se não existisse, porque não se deixa contar para não se mostrar finito. Mas um Deus infinito que foge da vista dos que o buscam confunde- se com a busca. Não existe»—assim pensava o Professor, subindo a ligeira rampa de areia, transpirado, com a cadeira e a toalha às costas. E durante um momento, hesitou. Na verdade, não seria um exagero procurar a circunstância ideal em que viesse a contar os pássaros? Pois porque haveria de existir Deus se o número contado fosse finito, e não ter existência se o número fosse infinito? O Argumentum Ornithologicum, escrito pelo poeta argentino, bem até que poderia conter um desafio, mas porque conteria um método? Porquê? Não se trataria apenas duma simples aporia destinada mais a encantar do que a convencer? O que ganharia o discernimento se, certo dia, sentado na praia, viesse a contar, um a um, vinte ou trinta pássaros? Suavemente, como quem embrulha a última franja dum desejo, o Professor deixou que caísse, sobre o telhado da casa onde se havia hospedado, a penúltima noite do Verão.
Então, no último dia, desceu à praia e ficou a ver repetir-se o mesmo andamento, o mesmo ruído, o mesmo bulício que afugentava as aves de cujo número tinha desistido. «Uma causa estúpida»—pensou. «Enveredei por uma demonstração errada. Uma demonstração que não só me ficou muito cara, como ainda poderia ter ficado mais, se acaso me tivesse deixado levar pela ganância daquele lorpa da tasca. «Ao que chegámos!»—ia pensando, enquanto caía a última tarde, e a sua vista não se desprendia do caminho das tábuas. Fazia bem não se desprender—As rodas traga-areia traziam, mais uma vez, a criatura diminuta envolvida em panos, e atrás dela a rapariga que cheirava a sangue e a leite. Rolavam os três na direcção da sua cadeira. Ao aproximar-se, a rapariga parecia penalizada. Os seus olhos estavam mais escuros e moviam-se agora duma outra forma. Também o carrinho. Já não o escondia, antes o expunha. E embora o bebé dormisse com os punhos junto das orelhas, parada, ela movia a pega como se o quisesse adormecer duas vezes. O bebé ia e vinha diante dos olhos do Professor. A rapariga tinha-se sentado na areia.
—«Desistiu dos pássaros . . . »—disse ela. «Bem vejo que desistiu. E pensar que, por mim, o senhor ficava sozinho com eles! Mas está lá em casa o meu marido. Que desculpa haveria de lhe dar?»—Ela olhava para trás. A porta do tasco metido no paredão encontrava-se aberta. A rapariga deveria estar cansada, porque não se movia. Tinha escondido as pernas debaixo da saia, e de vez em quando o seu olhar roçava de novo o amarelo. Ao Professor chegava aquele cheiro a bebé que o estonteava e o levava para longe. Sobretudo, quando a rapariga o retirou da almofada e o colocou no colo. Ela desapertou o vestido e escondeu a face da criança na carne do seio. A última onda descia, a praia alongava-se. Subitamente, uns pássaros maiores que carriças e menores que gaivotas começaram a andar junto à onda, e ignorando a presença humana puseram-se a caminhar na sua direcção. Na verdade, só o pulso do bebé, na ânsia de se alimentar, se movia. O Professor colocou os óculos de ver longe. Eram nove, os pássaros.
«Pássaros, Professor!»—disse a rapariga, soltando um grito.
Encandeados pela barra vermelha do sol-posto, colaram-se à areia e depois levantaram voo. As penas brancas luziam. Os pássaros desenharam várias voltas como se pescassem alguma coisa no ar. O Professor não poderia contá-los no voo se não os tivesse contado em terra. Mas porque os tinha contado, sabia finitamente quantos eram. «Um, dois, três, seis, sete, nove . . . »—contava o Professor, invadido por intensa alegria. «Pois finalmente contei nove . . . »—murmurou ele.
Murmurou várias vezes. A rapariga colocou a criança na almofada e começou a subir demasiado devagar o trilho de tábua. Mas ele não podia dizer-lhe adeus. Não tinha idade para comprimi-la contra si, sem lhe transmitir a fragilidade da sua prova.