A atriz que não sabia morrer
Adelice Souza
Era uma jovem atriz solitária que não sabia morrer. Ou melhor, era uma personagem que precisava morrer e não sabia como. Ou ainda, era uma jovem atriz que morria a cada dia, mas que no palco, não sabia como se morria.
Esta estória me foi contada por uma jovem senhora muito bonita, cujo rosto parecia o de uma dançarina de cabaré francês do início do século passado, numa madrugada de outono à beira de águas no hotel de uma cidade do interior. Contou-me, na ocasião, que nunca se esquecera de uma determinada peça de teatro que era representada por duas mulheres. Uma delas interpretava o papel de um cão, a outra, o de uma mulher solitária que vivia com o seu cão. As duas atrizes perambulavam cidades contando a estória daquelas duas mulheres. Ao acordarem pela manhã, cada uma em um quarto do hotel – as mulheres e não as atrizes, se é que podemos dissociá-las – sempre repousavam os seus olhares numa parede branca, sem passado impresso. Como um texto de teatro visto pela primeira vez numa leitura dramática, ainda sem esboços de cores, de pensamentos e medos das personagens. A parede branca só instaurava uma aceitação do nada. E acordar num quarto de hotel era sempre uma surpresa, mesmo que as paredes sempre fossem brancas. Nas noites intranqüilas, àquelas que fazem as paredes brancas virarem dragões apenas com uma chama de vela, as atrizes levantavam desesperadas em busca do interruptor de luz. E neste levantar, sempre uma nova aventura: não sabiam onde se dispunham os móveis e, obviamente, acidentes aconteciam. Mas nada de tamanha gravidade. A gravidade da busca pelo que não se conhece. E tudo era um cansaço: as longas estradas onde os olhos só identificavam o verde, um cansaço de verde; as longas conversas com as pessoas da cidade responsáveis pela divulgação da peça, um cansaço do óbvio; um cansaço para fazer a memória reter cada espaço e cada imagem do novo lugar, o número do quarto, em que área do hotel ficava o lugar onde fariam as refeições matutinas, um cansaço de precisar aprender e apreender coisas que não serviriam para nada quando saíssem dali e fossem para outro canto; um cansaço de comer até, de precisar se alimentar na presença de pessoas que não conheciam; um cansaço de dar bom-dia aos desconhecidos; um cansaço de apresentar a peça para desconhecidos; um cansaço de só se deparar com desconhecidos e um cansaço de também serem elas desconhecidas. O cansaço, que estava em toda parte, já tinha alcançado também a idade das duas. A idade que já faltava, cansou das duas. O amor também já faltava, cansou-se de esperar acontecer em vão. E elas pressentiam que, para as mulheres solteiras, o amor se cansava e também ia faltando com a idade.
A que interpretava o cão era mais bonita, e também precisava que fosse assim: o seu papel lhe exigia nudez e a vaidade ainda não havia se cansado dela. E das duas, por causa disso, a que interpretava o cão, era a que não dormia sempre só. Aqueles pobres homens do interior, não sabiam que poderiam ter culpa. O que sempre sonharam foi um dia dormir com uma atriz. Seja esta atriz qual fosse. Mas a atriz que interpretava o cão tinha caprichos: era preciso mais do que flores murchas. Era preciso, mesmo que isso não fosse levado à risca, a promessa de que um dia iria vê-la na capital. Vê-la interpretar outros papéis, onde seria mais do que um simples cão. Não que não gostasse de interpretar o cão. Adorava. Mas as pessoas daqueles lugares não entenderiam isso. Não sabiam qualificar uma peça teatral e aquela era quase inclassificável até para quem soubesse de classificações. A peça não era uma comédia. Não era uma tragédia também. Era quase um drama, era quase nada. Quase nada porque as pessoas nem riam nem sofriam. Nem se espelhavam. A peça nem servia como espelho para aquelas pobres pessoas que nunca se olhavam verdadeiramente no espelho. Era um drama muito específico o daquelas duas mulheres. Não merecia risos. E o sofrimento que a peça continha era inócuo, por que as pessoas que a assistiam já tinham feito um pacto inconsciente consigo mesmas que não sofreriam jamais com uma peça de teatro. No cinema até que podia ser. Mas no teatro, não. No teatro, jamais. O público conversava na parte mais triste da peça. Todos queriam fugir do que viam e ouviam. Queriam fugir daquela fatalidade. Queriam deixar que a desgraça fosse somente algo pertencente às duas mulheres. E era mais ou menos isso que sempre acontecia. E elas faziam a peça para elas mesmas. Porém espectadores nunca faltaram: naquelas cidades do interior não havia nada de mais interessante para fazer o tempo passar. Assistir a uma peça de teatro ainda era, pelo menos, uma coisa incomum. Todos os dias, no quarto de hotel, no final do espetáculo, as duas atrizes, separadamente, lembravam que faziam a peça para si mesmas. E mesmo sabendo disso, não se importavam.
E num destes dias que a vontade se confunde com a necessidade, a atriz que interpretava a mulher solitária acordou não querendo mais interpretar a mulher solitária que na verdade era: enfiou-lhe na cabeça que agora interpretaria o cão. Não sei se por inveja da nudez da outra quando fazia o cão; não sei se por não querer interpretar mais o papel da mulher solitária, que era o papel de si mesma; não sei se por querer também poder dormir acompanhada uma noite ou outra; ou se porque não queria mais morrer em cena todo dia no ato final. A verdade é que isso se deu. A moça que interpretava o cão resumiu a questão dizendo: não podemos. Instalou-se o caos: havia uma temporada de algumas cidades ainda a ser cumprida. As duas já quase não se falavam. Todos estes anos viajando com a peça – oito ao todo – já tinham despertado nas duas toda espécie de relacionamento possível: já foram a melhor amiga uma da outra; já discutiram detalhadamente cada frase do texto que interpretavam; já haviam demitido, contrassensualmente, o diretor da peça, porque achavam que a peça não era mais dele – e também, isso digo eu, não dizem elas, porque as duas tinham tido um romance tórrido com ele, que era um homem de estado civil questionável; já tinham optado por dormirem em quartos separados por perceberem que assim as coisas andariam melhor, enfim . . . Várias outras coisas já tinham acontecido no decorrer destes oito anos, mas nada sequer parecido com a atônita idéia da atriz que interpretava a mulher solitária querer interpretar o cão. Ela nem sabia se interpretaria bem o papel do cão, mas queria colocar a outra à prova. Será que a outra interpretaria bem o papel que até então fora feito por ela?
A atriz que iria interpretar o papel da mulher solitária inicialmente pensou que pudesse ser simples. Ela já contracenava – enquanto cão – há tanto tempo com esta mulher solitária, que já sabia todas as falas decoradas, a marcação de cena, as intenções. Mas aquele cão já era ela própria e estar no papel da mulher solitária que olha para si e se vê um cão era algo que ela realmente não estava preparada. Entretanto, isso não era o pior: o mais trágico, e isso era trágico em todos os sentidos, era morrer. Nunca morrera em cena. E sempre soubera, na sua condição de cão, que a atriz que fazia a mulher solitária, nestes oito anos que a peça já se fora, nunca morrera verdadeiramente como se deve morrer. E como é que se deve morrer? Isso ela também não sabia, mas agora precisava descobrir e era isso o que a atormentava. Ela deveria ter treinado para morrer e, no entanto, se esqueceu. Viveu apenas aprendendo a viver, sem perceber que a morte, um dia, iria ser uma ocupação, ou antes, uma preocupação da sua vida. Começaram os ensaios. A atriz que agora iria fazer o cão estava numa animação só. Chegou para o ensaio pontualmente com uma daquelas roupas que se usam nestas ocasiões e até havia telefonado ao diretor que logo comparecera para orientar as duas fornecendo novas indicações de cena. Quando a outra chegou, todos os possíveis e inimagináveis exercícios vocais e corporais para a adaptação de uma personagem canina já haviam sido feitos, e ela aguardava ansiosamente pela outra para que se desse início aos ensaios. Era uma nova perspectiva que se abria diante dela. De quatro, ela fazia caras e bocas que mais pareciam simulações de aventuras sexuais do que a performance de um cão débil. Para as duas, o texto era o que menos importava. A que iria interpretar o cão a partir de agora não tinha nenhum texto porque cães não falam. E a outra, sempre tivera facilidades com textos, possuía boa memória. O difícil seria morrer. Tudo – absolutamente tudo – pode ser feito como exercício para poder se interpretar um papel. Mas não se pode morrer para saber como se morre num teatro. Não sabia morrer, eis que surge a constatação. Não sabia morrer, não queria morrer. E mesmo que quisesse morrer, não saberia. Suas porções de morte já haviam sido utilizadas nestes oito anos que interpretava o cão. Não porque interpretasse o cão, mas pela árdua experiência destas viagens, por esse árduo trabalho de fazer com que as pessoas acreditassem que ela era o que não era, pela tristeza das personagens perdidas de serem mostradas porque sua ocupação estava voltada para o cão. Desistira, desta forma, de ser uma estudante de medicina que se suicidava numa piscina num curta-metragem de um novo diretor paulista que fazia sucesso vindo da publicidade. O jovem a havia chamado para interpretar o papel desta estudante exatamente durante o período de uma de suas temporadas com a peça do cão. Desistira da personagem antes mesmo de interpretá-la. Assim também aconteceu com outras personagens: uma mãe de gêmeos univitelinos e uma prostituta cubana num filme de um venezuelano. Preferira o cão à puta e à mãe. Vai ver já não mais sabia até onde era uma mulher ou um cão. Quando ladrava, os uivos eram de quem? Quando mexia o quadril, qual parte do cérebro acionava? Ou nenhuma delas era acionada, por que o trabalho desta interpretação já era tão mecânico que já dispensava um cérebro? O venezuelano, que era um excelente documentarista social retratando em película os excluídos na América Central, ficou tão indignado com a recusa do convite e o cancelamento do contrato para interpretar a tal prostituta cubana, que a difamou publicamente num festival de cinema. Ela acabou sabendo do acontecido e sem hesitar, assim que o encontrou, disse que ele era um filho da puta. E o venezuelano, profundo conhecedor de putas, indignou-se com o insulto tão usual da nossa cultura, que respondia descontrolado e aos berros “Mi madre no es puta, mi madre no es puta”. E por muitas outras situações diversas ela já havia passado nestes anos de profissão: já dormira na rua para interpretar uma mendiga; seduzira seu irmão para uma cena incestuosa; e até cortou – embora levemente – os próprios pulsos para interpretar uma cena suicida num vídeo amador. Mas morrer... Morrer, não. Morrer era o limite. Olhou sua companheira de palco de tantos anos naquela atitude fútil e não conseguia se convencer. Não era justo o que a colega fizera. E ela não devia ter aceitado esta situação imposta pela vaidade da outra. O cão era dela, sempre fora. Agora não seria diferente. Nunca se importara de o papel do cão ser um papel sem texto. Buscava sentido nos silêncios. Sabia da importância do cão para a mulher solitária. Sabia que sem o cão, a mulher solitária definharia. Ela construiu a fidelidade de um cão ao seu dono nestes oito anos. O cão fiel, mesmo sem nenhum orgulho de sê-lo, já era humanizado em suas entranhas, em sua memória. Não existiu um único dia em cena, que o cão não sofresse pela morte da mulher solitária, mesmo a colega interpretando sem a dignidade que a personagem necessitava. Sabia disto tudo, mas não sabia morrer. Não poderia morrer e deixar o cão vivo. O cão já era ela própria. E já que ela própria era o cão, não ira morrer enquanto personagem de mulher solitária e fazer o cão sofrer. Sabia disso, era uma certeza. E sabendo disso, se retirou do local do ensaio. Encontraram-na, mais tarde, morta, rodeada de velhas fotografias de antigas personagens e outras tantas do cão. Naquele dia, a atriz que sobrevivera subiu no auditório de uma pequena cidade com lágrimas verdadeiras enquanto as pessoas entravam no teatro e viam uma mulher nua, de quatro, tentando reproduzir um som que parecia ser o triste lamento de um cão. E os singelos espectadores sentaram e ficaram mudos durante cinqüenta e nove minutos olhando aquela mulher. Nada entenderam. Nada disseram. E foram dormir tristes. Era aquilo que era o teatro? Eles se perguntaram. Nenhum deles conseguiu dormir. Estavam muito tristes, muito tristes. Queriam até morrer.
Esta estória me foi contada por uma jovem senhora muito bonita, cujo rosto parecia o de uma dançarina de cabaré francês do início do século passado, numa madrugada de outono à beira de águas no hotel de uma cidade do interior. Contou-me, na ocasião, que nunca se esquecera de uma determinada peça de teatro que era representada por duas mulheres. Uma delas interpretava o papel de um cão, a outra, o de uma mulher solitária que vivia com o seu cão. As duas atrizes perambulavam cidades contando a estória daquelas duas mulheres. Ao acordarem pela manhã, cada uma em um quarto do hotel – as mulheres e não as atrizes, se é que podemos dissociá-las – sempre repousavam os seus olhares numa parede branca, sem passado impresso. Como um texto de teatro visto pela primeira vez numa leitura dramática, ainda sem esboços de cores, de pensamentos e medos das personagens. A parede branca só instaurava uma aceitação do nada. E acordar num quarto de hotel era sempre uma surpresa, mesmo que as paredes sempre fossem brancas. Nas noites intranqüilas, àquelas que fazem as paredes brancas virarem dragões apenas com uma chama de vela, as atrizes levantavam desesperadas em busca do interruptor de luz. E neste levantar, sempre uma nova aventura: não sabiam onde se dispunham os móveis e, obviamente, acidentes aconteciam. Mas nada de tamanha gravidade. A gravidade da busca pelo que não se conhece. E tudo era um cansaço: as longas estradas onde os olhos só identificavam o verde, um cansaço de verde; as longas conversas com as pessoas da cidade responsáveis pela divulgação da peça, um cansaço do óbvio; um cansaço para fazer a memória reter cada espaço e cada imagem do novo lugar, o número do quarto, em que área do hotel ficava o lugar onde fariam as refeições matutinas, um cansaço de precisar aprender e apreender coisas que não serviriam para nada quando saíssem dali e fossem para outro canto; um cansaço de comer até, de precisar se alimentar na presença de pessoas que não conheciam; um cansaço de dar bom-dia aos desconhecidos; um cansaço de apresentar a peça para desconhecidos; um cansaço de só se deparar com desconhecidos e um cansaço de também serem elas desconhecidas. O cansaço, que estava em toda parte, já tinha alcançado também a idade das duas. A idade que já faltava, cansou das duas. O amor também já faltava, cansou-se de esperar acontecer em vão. E elas pressentiam que, para as mulheres solteiras, o amor se cansava e também ia faltando com a idade.
A que interpretava o cão era mais bonita, e também precisava que fosse assim: o seu papel lhe exigia nudez e a vaidade ainda não havia se cansado dela. E das duas, por causa disso, a que interpretava o cão, era a que não dormia sempre só. Aqueles pobres homens do interior, não sabiam que poderiam ter culpa. O que sempre sonharam foi um dia dormir com uma atriz. Seja esta atriz qual fosse. Mas a atriz que interpretava o cão tinha caprichos: era preciso mais do que flores murchas. Era preciso, mesmo que isso não fosse levado à risca, a promessa de que um dia iria vê-la na capital. Vê-la interpretar outros papéis, onde seria mais do que um simples cão. Não que não gostasse de interpretar o cão. Adorava. Mas as pessoas daqueles lugares não entenderiam isso. Não sabiam qualificar uma peça teatral e aquela era quase inclassificável até para quem soubesse de classificações. A peça não era uma comédia. Não era uma tragédia também. Era quase um drama, era quase nada. Quase nada porque as pessoas nem riam nem sofriam. Nem se espelhavam. A peça nem servia como espelho para aquelas pobres pessoas que nunca se olhavam verdadeiramente no espelho. Era um drama muito específico o daquelas duas mulheres. Não merecia risos. E o sofrimento que a peça continha era inócuo, por que as pessoas que a assistiam já tinham feito um pacto inconsciente consigo mesmas que não sofreriam jamais com uma peça de teatro. No cinema até que podia ser. Mas no teatro, não. No teatro, jamais. O público conversava na parte mais triste da peça. Todos queriam fugir do que viam e ouviam. Queriam fugir daquela fatalidade. Queriam deixar que a desgraça fosse somente algo pertencente às duas mulheres. E era mais ou menos isso que sempre acontecia. E elas faziam a peça para elas mesmas. Porém espectadores nunca faltaram: naquelas cidades do interior não havia nada de mais interessante para fazer o tempo passar. Assistir a uma peça de teatro ainda era, pelo menos, uma coisa incomum. Todos os dias, no quarto de hotel, no final do espetáculo, as duas atrizes, separadamente, lembravam que faziam a peça para si mesmas. E mesmo sabendo disso, não se importavam.
E num destes dias que a vontade se confunde com a necessidade, a atriz que interpretava a mulher solitária acordou não querendo mais interpretar a mulher solitária que na verdade era: enfiou-lhe na cabeça que agora interpretaria o cão. Não sei se por inveja da nudez da outra quando fazia o cão; não sei se por não querer interpretar mais o papel da mulher solitária, que era o papel de si mesma; não sei se por querer também poder dormir acompanhada uma noite ou outra; ou se porque não queria mais morrer em cena todo dia no ato final. A verdade é que isso se deu. A moça que interpretava o cão resumiu a questão dizendo: não podemos. Instalou-se o caos: havia uma temporada de algumas cidades ainda a ser cumprida. As duas já quase não se falavam. Todos estes anos viajando com a peça – oito ao todo – já tinham despertado nas duas toda espécie de relacionamento possível: já foram a melhor amiga uma da outra; já discutiram detalhadamente cada frase do texto que interpretavam; já haviam demitido, contrassensualmente, o diretor da peça, porque achavam que a peça não era mais dele – e também, isso digo eu, não dizem elas, porque as duas tinham tido um romance tórrido com ele, que era um homem de estado civil questionável; já tinham optado por dormirem em quartos separados por perceberem que assim as coisas andariam melhor, enfim . . . Várias outras coisas já tinham acontecido no decorrer destes oito anos, mas nada sequer parecido com a atônita idéia da atriz que interpretava a mulher solitária querer interpretar o cão. Ela nem sabia se interpretaria bem o papel do cão, mas queria colocar a outra à prova. Será que a outra interpretaria bem o papel que até então fora feito por ela?
A atriz que iria interpretar o papel da mulher solitária inicialmente pensou que pudesse ser simples. Ela já contracenava – enquanto cão – há tanto tempo com esta mulher solitária, que já sabia todas as falas decoradas, a marcação de cena, as intenções. Mas aquele cão já era ela própria e estar no papel da mulher solitária que olha para si e se vê um cão era algo que ela realmente não estava preparada. Entretanto, isso não era o pior: o mais trágico, e isso era trágico em todos os sentidos, era morrer. Nunca morrera em cena. E sempre soubera, na sua condição de cão, que a atriz que fazia a mulher solitária, nestes oito anos que a peça já se fora, nunca morrera verdadeiramente como se deve morrer. E como é que se deve morrer? Isso ela também não sabia, mas agora precisava descobrir e era isso o que a atormentava. Ela deveria ter treinado para morrer e, no entanto, se esqueceu. Viveu apenas aprendendo a viver, sem perceber que a morte, um dia, iria ser uma ocupação, ou antes, uma preocupação da sua vida. Começaram os ensaios. A atriz que agora iria fazer o cão estava numa animação só. Chegou para o ensaio pontualmente com uma daquelas roupas que se usam nestas ocasiões e até havia telefonado ao diretor que logo comparecera para orientar as duas fornecendo novas indicações de cena. Quando a outra chegou, todos os possíveis e inimagináveis exercícios vocais e corporais para a adaptação de uma personagem canina já haviam sido feitos, e ela aguardava ansiosamente pela outra para que se desse início aos ensaios. Era uma nova perspectiva que se abria diante dela. De quatro, ela fazia caras e bocas que mais pareciam simulações de aventuras sexuais do que a performance de um cão débil. Para as duas, o texto era o que menos importava. A que iria interpretar o cão a partir de agora não tinha nenhum texto porque cães não falam. E a outra, sempre tivera facilidades com textos, possuía boa memória. O difícil seria morrer. Tudo – absolutamente tudo – pode ser feito como exercício para poder se interpretar um papel. Mas não se pode morrer para saber como se morre num teatro. Não sabia morrer, eis que surge a constatação. Não sabia morrer, não queria morrer. E mesmo que quisesse morrer, não saberia. Suas porções de morte já haviam sido utilizadas nestes oito anos que interpretava o cão. Não porque interpretasse o cão, mas pela árdua experiência destas viagens, por esse árduo trabalho de fazer com que as pessoas acreditassem que ela era o que não era, pela tristeza das personagens perdidas de serem mostradas porque sua ocupação estava voltada para o cão. Desistira, desta forma, de ser uma estudante de medicina que se suicidava numa piscina num curta-metragem de um novo diretor paulista que fazia sucesso vindo da publicidade. O jovem a havia chamado para interpretar o papel desta estudante exatamente durante o período de uma de suas temporadas com a peça do cão. Desistira da personagem antes mesmo de interpretá-la. Assim também aconteceu com outras personagens: uma mãe de gêmeos univitelinos e uma prostituta cubana num filme de um venezuelano. Preferira o cão à puta e à mãe. Vai ver já não mais sabia até onde era uma mulher ou um cão. Quando ladrava, os uivos eram de quem? Quando mexia o quadril, qual parte do cérebro acionava? Ou nenhuma delas era acionada, por que o trabalho desta interpretação já era tão mecânico que já dispensava um cérebro? O venezuelano, que era um excelente documentarista social retratando em película os excluídos na América Central, ficou tão indignado com a recusa do convite e o cancelamento do contrato para interpretar a tal prostituta cubana, que a difamou publicamente num festival de cinema. Ela acabou sabendo do acontecido e sem hesitar, assim que o encontrou, disse que ele era um filho da puta. E o venezuelano, profundo conhecedor de putas, indignou-se com o insulto tão usual da nossa cultura, que respondia descontrolado e aos berros “Mi madre no es puta, mi madre no es puta”. E por muitas outras situações diversas ela já havia passado nestes anos de profissão: já dormira na rua para interpretar uma mendiga; seduzira seu irmão para uma cena incestuosa; e até cortou – embora levemente – os próprios pulsos para interpretar uma cena suicida num vídeo amador. Mas morrer... Morrer, não. Morrer era o limite. Olhou sua companheira de palco de tantos anos naquela atitude fútil e não conseguia se convencer. Não era justo o que a colega fizera. E ela não devia ter aceitado esta situação imposta pela vaidade da outra. O cão era dela, sempre fora. Agora não seria diferente. Nunca se importara de o papel do cão ser um papel sem texto. Buscava sentido nos silêncios. Sabia da importância do cão para a mulher solitária. Sabia que sem o cão, a mulher solitária definharia. Ela construiu a fidelidade de um cão ao seu dono nestes oito anos. O cão fiel, mesmo sem nenhum orgulho de sê-lo, já era humanizado em suas entranhas, em sua memória. Não existiu um único dia em cena, que o cão não sofresse pela morte da mulher solitária, mesmo a colega interpretando sem a dignidade que a personagem necessitava. Sabia disto tudo, mas não sabia morrer. Não poderia morrer e deixar o cão vivo. O cão já era ela própria. E já que ela própria era o cão, não ira morrer enquanto personagem de mulher solitária e fazer o cão sofrer. Sabia disso, era uma certeza. E sabendo disso, se retirou do local do ensaio. Encontraram-na, mais tarde, morta, rodeada de velhas fotografias de antigas personagens e outras tantas do cão. Naquele dia, a atriz que sobrevivera subiu no auditório de uma pequena cidade com lágrimas verdadeiras enquanto as pessoas entravam no teatro e viam uma mulher nua, de quatro, tentando reproduzir um som que parecia ser o triste lamento de um cão. E os singelos espectadores sentaram e ficaram mudos durante cinqüenta e nove minutos olhando aquela mulher. Nada entenderam. Nada disseram. E foram dormir tristes. Era aquilo que era o teatro? Eles se perguntaram. Nenhum deles conseguiu dormir. Estavam muito tristes, muito tristes. Queriam até morrer.