Homenagem ao papagaio verde
Jorge de Sena
Era verde e velho. Pelo menos, antigo. E ocupa na minha memória—junto com uma galeria indistinta e confusa de gatos tigrados e «preparados» pelo amola-tesouras-e-navalhas (mais tarde, esse primeiro mistério da minha infância passou a ser celebrado na Escola de Medicina Veterinária, já com os requintes da assepsia), e todos chamados «Mimosos» tão onomasticamente como os papas são Pios—o mais arcaico lugar reservado a uma personalidade animal. Digo personalidade, e bem, porque ele a tinha, e porque foi mesmo, para lá das surpresas contraditórias das «pessoas grandes», tão caprichosas e volúveis, tão imprevisíveis, tão ilógicas, tão hipocritamente cruéis, a revelação de um carácter. Não tinha nome: era o Papagaio, e parecia-me, porque falava, um ser maravilhoso. Depois, e a chegada desse outro eu recordo, meu pai trouxe das Africas um papagaio cinzento. O papagaio por excelência passou a chamar-se o Papagaio Verde, e vivia de gaiola pendurada numa das varandas em que, por um tapume de madeira, estava dividida a varanda das traseiras da minha casa, cabendo uma parte à cozinha e outra à sala de jantar. Uma das reivindicações políticas da minha infância foi a troca de uma situação injusta que confinava o Papagaio Verde à «varanda da cozinha». Na da sala de jantar, a que era mais próxima da rua, vivia o Papagaio Cinzento. Este, menos esplendoroso e menos corpulento, menos vaidoso também das suas cores baças, morreu depois do Verde, ave grande, vistosa, transbordante de presunção e dignidade; e, apesar de ter tido muito mais do que o Verde o dom da palavra (usando-o, todavia, com menos humor involuntário), não o recordo tão distintamente como a imagem do outro, à qual a sua viera sobrepor-se à maneira de um negativo, uma sombra, um apagado duplo, na imprecisão focal da memória a desfocar-se por ele. De resto, o Cinzento era sujeito retraído e friorento, que ficava encolhido a resmonear o reportório variado, sem manifestar por alguém qualquer predilecção afectiva; tinha apenas de simpático o olhar nostálgico, melancólico, e a mansidão muito dócil do resignado e acorrentado escravo. O Verde, pelo contrário, era exuberante, de amizades apaixonadas e de ódios vesgos, sem continuidade nem obstinação. Minto: essas amizades e ódios, não continuados nem firmes, faziam parte do seu carácter expansivo e espectacular. Mas, com o andar do tempo, começaram a refinar numa aversão colectiva, azeda e ruidosa, ou concretizada num bico de respeito, que, traiçoeiramente, na frente de uma adejada revoada verde, se apoderava cerce de um dedo, uma canela, uma madeixa de cabelo. A contrapartida deste crescente pessimismo em relação ao género humano (no qual ele incluía, com um desprezo que raiava o absurdo, o Cinzento) foi uma dedicada e veemente amizade por mim. No mundo hostil dos adultos que me cercavam de solicitude e clausura, o Papagaio Verde, afinal, não me revelou apenas o que era carácter: ensinou-me também o que a amizade é.
Que o Papagaio Verde era brasileiro, como angolano o Cinzento, foi dos primeiros axiomas de biologia, que aprendi. Era sempre repetido, categórica e sacramentalmente, por meu pai ou por minha mãe, quando, em jantares de família, se discutiam as graças relativas dos dois bichos, e havia sempre um tio meu para condenar, em nome dos perigos da psitacose, a posse de seres tão exóticos, portadores prováveis e espontâneos de uma doença estranha, mortalíssima, que eu, criança à espera de vez para a carne assada, imaginava como a instalação crónica, no organismo dos adultos, daquela tendência manifesta para falarem de cor e a despropósito, coisa que os papagaios quase não faziam. Mas o caso é que, verdes e papagaios, só no Brasil; papagaios e cinzentos, só na África, e ainda hoje não sei se isto é verdade ou mentira. Outro axioma era que os papagaios comiam milho, do que eu concluía (e creio que o meu subconsciente ainda guarda essa conclusão) que a ingestão de milho era um sinal dos infalíveis para distinguir as pessoas e os papagaios.
No começo das minhas memórias de infância, o Papagaio Verde era um animal fabuloso que me recebia aos gritos, enquanto dava voltas no poleiro, trocando os pés, e me olhava de alto com um olho superciliar, e de bico entreaberto. Quando comecei a vê-lo, via-o muito pouco, já que ele vivia na «varanda da cozinha», que me era proibida por causa das torneiras, como a cozinha o era por causa do lume. Ficávamos, quando eu conseguia iludir as vigilâncias, ou subornar o cordão sanitário, os dois numa contemplação embebida: eu, de mãos nos bolsos do bibe de quadradinhos azuis e brancos (que era o uniforme do meu presídio), e ele, com a gaiola pendurada alta, entreabrindo as asas para um voo um tanto ameaçador, com a cabeça de banda, e soltando uma espécie de grunhido que culminava num arrepio que o eriçava todo. Que era brasileiro e fora trazido do Brasil, eu sabia. Mas, antes de ser posto naquela varanda, onde parecia, numa casa triste e soturna, uma nódoa insólita, obscenamente garrida, viajara muito. Vivera a bordo de navios, cheirara longamente o mar, não a maresia ribeirinha, mas os ventos do largo, prenhes de fina espuma e de um ardor de andanças. Algo disso ficaria nele, e era um jeito de balancear-se no poleiro sem levantar nenhuma das patas, sem alterná-las como o Cinzento fazia. E também uma bonomia astuciosa, egoísta, irónica, subjacente ao ímpeto altivo do seu pescoço amarelo e da sua poupa azul. Ficara-lhe, além disso, um reportório bravo, truculento, metaforicamente expressivo, que era o principal motivo do confinamento discreto à varanda da cozinha. Ele, pouco a pouco, ia esquecendo aqueles horrores que minha mãe não queria que eu ouvisse, e só os recordava em catadupa, nas suas horas de tédio mais sonhador, em que os dizia entrebico, ou nos momentos de furiosa irritação, em que, parecendo uma águia (achava eu) imponentíssima, vomitava impropérios que escandalizavam a vizinhança e dobravam de riso as criadas, o que o irritava mais. Não foi assim, na escola ou na rua, que eu aprendi os nobres palavrões essenciais à vida, embora me ficasse, para aprender depois, algum sentido deles. Aliás, este sentido eu ia aprendendo adivinhadamente nas discussões domésticas à porta fechada, entre minha mãe e meu pai, quando ele, do outro lado da porta, os bradava, e muito explicados em frases elucidativas.
Meu pai era uma personagem mítica que eu quase só via à hora de jantar, durante uns quinze dias, de três em três meses. A sua chegada era prenunciada por um cheiro a encerados e a pó espanejado, que se espalhava pela casa toda, cujas portadas de janela se semicerravam como para conservar, em estado de graça e de jazigo de família, aquele ambiente de silêncio e treva premonitória. Não se sabia nunca ao certo essa chegada. Ele não escrevia senão de raro em raro, e minha mãe, para calcular a demora da viagem, ia de vez em quando, comigo pela mão, aos portais da Companhia de Navegação ver, no quadro onde registavam o movimento dos barcos, em que porto das Africas o navio de meu pai saíra ou entrara. Quando eu já sabia ler, mandava-me lá dentro a mim, e ficava-se meia oculta na esquina da rua, creio que para, aos empregados que a conheciam, não mostrar que não sabia mesmo onde o marido andava. Telefonar, e não tínhamos telefone, não lhe ocorria; apresentar-se de cabeça erguida fosse onde fosse era contra os seus princípios. E, muito provavelmente, nem os empregados se lembrariam de achar estranho que ela, ainda que muitas cartas recebesse naquele tempo sem aviões, fosse ver a rota do navio. Eu, a quem tantos compartimentos da casa eram defesos, ficava durante e após as limpezas, e até ao dia da chegada, encurralado de todo, e sem nada que sujasse ou me sujasse. E odiava aquela expectativa, ao mesmo tempo que esperava curiosamente o que meu pai traria: caixotes de vinho da Madeira, cachos de bananas, frutas várias em cestas, às vezes manipansos dos pretos, que me eram dados para eu brincar. Um dia, era o movimento na escada da casa, que, chefiados pelo criado de meu pai, o criado encasacado de branco e privativo do comandante, vários homens subiam ajoujados, entalando na porta, resfolegantes e trôpegos, os malões enormes, os caixotes, e as cestas, que ficavam no corredor e atravancavam tudo. Ao cheiro dos encerados e das solarinas, sobrepunha-se então o das frutas exóticas, o da palha dos caixotes, o do bafio dos malões, que tudo, apesar de sempre igual, eu queria abrir, tocar e ver. Nunca me deixaram abrir, tocar ou ver coisa nenhuma; e eu ficava entreportas, olhando o avolumar das palhas de que emergiam frutos e baratas saltavam, às corridas logo pelo corredor fora, perseguidas pelos gritos de minha mãe e das criadas, atarantadamente todas esgrimindo vassouras e dando com elas pancadas desatinadas. Em geral, para gosto meu, as baratas escapavam-se. Depois, era uma expectativa meio nervosa, com muitos “o papá está a chegar” e muitas espreitadelas para a rua, a vermos se ele assomava ao virar a esquina. Até que, com o seu andar balanceado, a estatura corpulenta aparecia atravessando a rua, chapéu de feltro de aba revirada e debruada a seda, bengala com aplicações de prata, charuto havano empinado na boca. Minha mãe, sem dizer da janela um adeuzinho prévio, ia logo abrir do patamar a porta da rua, puxando—e eu queria sempre puxar—a transmissão metálica e primitiva que levantava o trinco. E ficava perfilada, segurando-me a curiosidade indiferente com que eu queria debruçar-me do corrimão, e largando-me só quando meu pai já vinha no último lanço da escada. Então, subitamente intimidado, eu descia dois ou três degraus; meu pai—«Então como vai o nosso homem?»—roçava-me na testa uns lábios frios e o bigode esverdinhado, farto e retorcido nas pontas que ele frisava, e parava ao pé da minha mãe, sem jeito de abraçá-la. Ficavam assim diante um do outro, a olharem-se, e eu erguendo os olhos por entre eles, até que meu pai a agarrava pela cintura, o espaço entre ambos desaparecia, e minha mãe deixava-se pousar a cabeça no ombro dele. Davam-se então um beijo logo fugidio—«Olha o pequeno», dizia minha mãe—e entravam para o corredor, ambos muito comprometidos, sem se olharem nem me olharem a mim. As criadas apareciam à porta da cozinha, num arquejar de peitos excitados e de olhares risonhos, a que meu pai atirava um sobranceiro «olá», e entrávamos para a sala, com o sofá e as poltronas baixas de bolinhas que os «Mimosos» arrancavam uma a uma, eu ficava no meio da casa, ora num pé ora noutro, com uma vontade imensa de fazer «chichi», e meu pai sentava-se na borda do sofá, enquanto minha mãe se sentava na borda de uma das poltronas. Trocavam então algumas informações: quem desta vez aparecera em Luanda ou no Lobito, recomendações acerca das fardas brancas, que tinham de ser todas lavadas e engomadas, enumeração de quem oferecera os caixotes, as frutas, os cachos de bananas. Minha mãe contava, por alíneas, sem explicações nem comentários, os acontecimentos da família, as doenças que eu tivera, queixava-se de como passara desta vez, tão mal do coração. Ele ouvia distraidamente, como uma visita de cerimónia, mas ainda de chapéu na cabeça, e com as mãos na curva da bengala. Às vezes uma das mãos levantava-se para cofiar e retorcer uma das pontas do bigode. Minha mãe, então, levantava-se, como se fosse para despedi-lo, e tirava-lhe da cabeça o chapéu, e das mãos a bengala. A careca dele, pontuda e luzidia, brilhava. Ele levantava–se também, vinham até ao corredor, e observavam ambos as cestas e os malões. Novamente meu pai enumerava os obséquios que recebera, e aproveitava para informar de qualquer pedido que lhe fora feito pela parentela africana de minha mãe, uma passagem gratuita, de um porto para outro, ou de como haviam ido a bordo para comer-lhe o almoço. Demoras nas falas e nos gestos de ambos prolongavam um mal-estar que se transmitia. Meu pai, agarrando minha mãe, começava a arrastá-la para o quarto deles. Minha mãe esquivava-se, ele tirava-lhe das mãos o chapéu e a bengala, que pendurava no bengaleiro, e ia para o quarto pôr-se à vontade. Ela ia à cozinha extremamente embaraçada, e cada vez mais o ficava por ele a chamar lá de dentro, com insistência. Ele a chamar, ela a repetir pela centésima vez naquele dia as instruções para o jantar. Viriam meus tios, como sempre; e os cristais e os talheres, saídos já do guarda-prata e do aparador, apinhavam-se no mármore desses dois móveis, na sala de jantar; era outra das ritualísticas decisões que se tomavam de três em três meses. A voz do meu pai vinha insistente, cada vez mais berrada. Cabisbaixa, minha mãe interrompia as observações, e ia pelo corredor fora em direcção ao quarto. À porta, meu pai em ceroulas de fitas e em fralda esperava, e tinha de puxá-la para dentro. A chave rangia e estalava na fechadura. As criadas trocavam olhares, levavam-me para a varanda, onde o Papagaio Verde, na sua gaiola, subia e descia afanosamente do poleiro, segurando-se com o bico e alçando a perna. Não estava em causa que ele desse o pé a ninguém, a não ser a uma ponta de pau de vassoura, que eu lhe apresentava. Olhando-me de revés, condescendia em pousar de leve um pé trémulo na ponta do pau, enquanto eu repetia: «Papagaio Real, quem passa?»—para ele se dignar dizer: «É o Rei . . . É o Rei…», como se não soubesse o resto. E, de súbito, casquinava estrondosamente, sacudia-se, e cantava desaforadamente uma das cantigas em voga. Mal as criadas vinham, rindo, acompanhá-lo, calava-se logo, quieto e sério, fitando-as de bico entreaberto.
Foi por essa altura que a nossa amizade se estabeleceu. As luas-de-mel de meus pais duravam poucos dias, pelo menos com aquela atmosfera de porta e janela fechada em pleno sol e de passos leves das criadas, durante a vigência da qual eu—esquecido, ou mais distantemente tratado, porque minha mãe, quando saía lá de dentro, andava chorosa pelos cantos e não me chamava muito—eu ficava mais livre, entretidas as criadas numa escuta maliciosa ou no «far niente» das tarefas inacabadas. Mas duravam, com efeito, pouco, e logo, quase sem transição, passavam à violência do temporal desfeito, para o que também a porta se fechava, às vezes com safanões à porta e competições pela posse da chave, e lá dentro do quarto havia gritos de ambos, frases sibiladas raivosamente, soluços e ais de minha mãe, até que, num repente, a porta abria-se para as criadas, já a postos, acudirem, com a água de flor de laranja, à minha mãe que, estendida na cama, muito pálida, soltava leves ais de mão no coração. Eu esgueirava-me pelo meio do tumulto, sem que ninguém reparasse em mim, e era em geral minha mãe, abrindo os olhos, quem me enxergava, suspirava mais soluçadamente, e estendia para mim mãos trémulas e dramáticas que solicitavam a minha conivência, a minha aliança, e das quais eu recuava tonto, com repugnância. E era meu pai quem me empurrava para elas, como uma espécie de plenipotenciário, encarregado de negociar a paz de uma guerra cujas causas eu não entendia, mas de que me sentia, sem o saber, o campónio que vê os exércitos inimigos devastarem-lhe a seara, uma pequena horta, um pobre jardim. Aliás, por isso, a situação de plenipotenciário tinha, pela jogada impotência e pela passividade disputada, muito mais de um refém que de um embaixador. Ninguém me perguntava ou me ensinava a perguntar o que eu queria ou o que eu pensava; e ambos, como os aliados, e os pacificadores, as terceiras forças de «cruz vermelha» e neutralismo, que às vezes eram invocadas (quando não eram arrastadas nos acontecimentos), afinal me ignoravam. E, tão depressa quanto era empurrado para os braços trémulos, era retirado deles e posto de lado, fora da porta, como a bandeira branca que, depois de brandida e de surtir efeito, fica no chão, entre os cadáveres, as cápsulas, o lixo das guerras modestas e localizadas.
Eu ia para a varanda conversar com o Papagaio Verde, não para lhe contar desditas que claramente não entrevia, mas para comungar numa idêntica solidão acorrentada. Eu saía muito pouco, a rua era-me proibida, primos meus vinham às vezes brincar comigo. As brincadeiras, porém, constantemente interrompidas por minha mãe, a quem era preciso pedir licença para ir buscar ao «quarto escuro» o caixote dos brinquedos (o «quarto escuro» era, também, o misterioso reduto-alcova das criadas, cuja intimidade constituía outro mistério estranho), não tinham graça nem entusiasmo, e degeneravam sempre em brigas sem motivo, em que se opunham o meu anseio de brincar tudo ao mesmo tempo, e a absorção com que meus primos se dedicavam exclusivamente a algum instrumento de brincar, que eles não possuíssem e os seduzisse mais. Quando essas brigas estalavam, minha mãe mandava-os embora, e eu ficava dias e dias remoendo uma autoritária cólera insatisfeita, e esperando (de ideia fixa e numa insistência cuidadosa, para que minha mãe logo a não contrariasse) que eles voltassem. Fui, por extensão, pouco a pouco, sem cálculo nem método, conquistando o Papagaio Verde, e, ao mesmo tempo, o respeito já lendário que ele impusera à sua volta. Sem largar o poleiro, e olhando ironicamente para o meu dedo, ele dava-me o pé; cantava comigo, aceitava da minha mão alguma das coisas, como um talo de couve, que ele apreciava. Fui descobrindo que, na verdade, ele não apreciava muito esses talos que, solícito, eu lhe metia no pé. Mais por delicadeza que por gosto, mais para aproveitar a oportunidade de despedaçar metodicamente um objecto (que a gaiola com poleiro de folha, e a distância a que era posto de quanto fosse roível, não lhe consentiam), é que ele aceitava essas dádivas. Não as comia; com bicadas certeiras e calmas, que intercalava de laterais olhadelas para mim, partia tudo em bocadinhos que tombavam na gaiola ou no chão. Terminada a cerimónia, descia do poleiro, e continuava na borda da gaiola uma segunda fase que era escolher dos caídos pedaços, aqueles que ainda podiam ser, sem muito esforço, reduzidos a tamanho menor. Contemplava, então, de olho grave e atento, a extensão da devastação que fizera. Então, abrindo as asas e esticando o pescoço, sacudia-se de penas eriçadas, catava no alto da poupa azul um piolhinho (para o que erguia, à cabeça baixa, um dedo cuja unha coçava suavemente por entre as penas), sacudia-se de novo, subia para o poleiro, assentava-se nele, assentava nos ombros a cabeça, e fechava os olhos. Era o sinal de que eu me retirasse, de que a minha visita acabara. Com a ponta da vassoura, após esperar que a respiração dele fosse pausada e funda no peito verde, eu tocava-lhe. Ele fazia de conta que não dava por isso, era preciso tocar-lhe vezes seguidas, enfiar-lhe o cabo da vassoura por baixo das asas. Até que tudo isto se repetia como uma cena previamente ensaiada entre nós. Fingindo-se ele distraído e indiferente, retraído e alheio, eu teimava com o cabo da vassoura; e ele, subitamente, disparava um voo circular na ponta da corrente, pousava de esguelha no pau empinado, com as asas semiabertas numa imitação de procurado equilíbrio, e cantava, gargalhando e dando estalinhos com a língua.
As criadas tinham raiva daquele entendimento que ele não lhes concedera nunca, com uma altivez senhorial que tornava difícil lavar lhe a gaiola posta para isso no chão da varanda, ou deitar-lhe água e comida nos recipientes pendurados de cada lado do poleiro. E, raivosas, faltavam-lhe ao respeito, tocando-lhe com a vassoura na cauda, a pretexto de varrerem melhor um recanto, ou despejando, numa pontaria falsamente errada, água por cima dele. Furioso, subia a empoleirar-se no espaldar da gaiola, de onde, sem dar muita confiança de perder a cabeça, lhes fazia arremessos temerosos: mas, às vezes, perdia-a mesmo, e então, veloz, com o pé esticado numa corrente que arrastava a gaiola, agarrava uma ponta de chinelo que, aos gritos, muito trémulo, não largava das patas e do bico. Uma vez, a fúria foi tal que só a jarros de água o largou, ficando semidesmaiado, tremente de exaustão nervosa e de frio, a gemer uma ladainha triste e rouca, em que havia, dispersos, alguns palavrões adequados. Dessa vez, deixou que eu lhe acudisse, o enxugasse com um pano, lhe penteasse as penas tão indignamente ricas, tão enegrecidas do forçado banho. Daí em diante, foi que a nossa leal camaradagem se firmou, sem hesitações nem reservas.
Certa manhã, quando me levantei, havia na cozinha um movimento desusado, gritos, uma atmosfera de pânico. Provavelmente, essa atmosfera despertara-me. Fui ver. O Papagaio Verde estava solto! Passeando para cá e para lá no chão, arrastando uma ponta de corrente, o Papagaio proibia que a porta da varanda se abrisse, e esvoaçava ameaçador contra a greta que nas portadas as criadas tentassem. Eu queria passar para fora, minha mãe que acudira ao tumulto segurava-me, o Papagaio berrava. As criadas repetiam que ele fugira, fugira! Eu achava que, se tivesse fugido, teria voado para as árvores do quintal subjacente. E desmenti. E, lutando esgatanhadamente contra todas, abri as vidraças da varanda. Afugentando para o corredor a minha mãe e as criadas, que pela porta entreaberta da cozinha observavam o terrível incidente de que eu sairia mortalmente ferido («com um olho vazado», clamava minha mãe em ânsias), o Papagaio entrou, dando ao corpo nos requebros de avançar, mal espalmados no chão os dedos, a passos largos, direito a mim, que, contagiado levemente pelo pânico daquelas galinhas, recuara. E veio até aos meus pés, e fez contra um meu sapato, com doçura e ternura, aquele gesto de afiar lateralmente o bico, que fazia às vezes na borda da gaiola. Abaixei-me para lhe pegar. Ele deixou que o agarrasse, instalou-se num meu dedo, e pesava.
Que dia triunfal! Meu pai partira já, dessa vez, no torvelinho dos malões e dos engomados, com o criado de casaco branco, muito tímido entreportas, a dirigir a saída da bagagem. Houvera as despedidas do costume, com meu pai acabando por tirar da algibeira um envelope branco que pousava em cima do «toilette» e era o dinheiro para três meses de ausência. Houvera a contagem do dinheiro, por minha mãe, e o regateio mútuo sobre se chegavam ou não aquelas notas. Depois os beijos e abraços, a ida à janela da sala para dizer-se o adeus final. E eu recomeçara, aos fins de tarde, as idas a casa da Dona Antonieta, para a lição de piano, que a família toda, com meu pai à frente, achava uma indignidade mulheril, e que era a única manifestação de teimosa independência por parte da minha mãe. Para mim, a Dona Antonieta era uma pessoa que eu me espantava de afinal não ter sido decapitada, realengamente, na Revolução Francesa; e o piano era triplo e delicioso pretexto para fazer o contrário do que queria a maioria numerosa dos meus tutores honorários, para penetrar na sala obscura e proibida onde o nosso piano estava aguitarrando-se na solidão húmida, e para ficar sonhadoramente compondo, curvado sobre as teclas amareladas, as sinfonias que me tornariam livre, célebre, distante de tudo e todos.
Com o Papagaio no dedo, avancei pelo corredor fora em direcção à sala, seguido pelo cortejo receoso que náo ousava deter-me, porque o bicho abria para elas um bico desmedido. Abri a porta, entrei, escancarei de par em par as portadas (e, para lutar com os fechos, tive de pousar no chão o Papagaio que logo esvoaçou para a porta, a conter o avanço das tropas perseguidoras), fui fechar a porta, sentei-me no banco do piano que abri, depois de levantar a colcha indiana que o cobria e cujas franjas sempre se enguiçavam na tampa. Concentrando-me, desferi acordes tumultuosos e dissonantes, com trémulos rotundos nas oitavas baixas e glissandos nas esganiçadas. O Papagaio, numa atrapalhação precipitada, subiu para as costas da cadeira mais próxima, e espanejou-se, e acompanhava, dançando e gritando uma melopeia desafinada, a minha música sem nexo. E, de vez em quando, para maior alegria minha, largava escagarrichadamente pelo estofo da cadeira, que assim se degradava, as suas dejecções acinzentadas.
Não houve mais contê-lo. Eu próprio o prendia e soltava da gaiola, e ele esperava com paciência as horas em que iria buscá-lo para o trazer à sala. Minha mãe e as criadas não se atreviam a intervir, e eu ouvira já conspirações que assassinavam o Papagaio, o exilavam para longes casas. Mas, quando eu o soltava, e ele andava por toda a parte atrás de mim, tudo ficava por nossa conta: minha mãe fechava-se no quarto, as criadas fechavam-se na cozinha. Uma das nossas diversões era um pequeno trapézio que eu criara para ele, suspenso da bandeira, sem vidraça, da porta do «quarto escuro». O Papagaio, ensinado por mim, saltava do trapézio balouçante para a vassoura que eu atravessava na frente; e, de cada vez que o pouso se realizava com precisa elegância, a sua alegria não tinha limites. Às vezes, íamos ambos à varanda da sala de jantar visitar o Papagaio Cinzento. Este, da sua gaiola, olhava-nos com chocado pasmo, e ensaiava uma dança tonta de criatura a quem acendessem, de súbito, uma luz forte. O Papagaio Verde, pousado no meu ombro, arreliava-o com gritinhos e mordidelas carinhosas na minha orelha; e o outro, escandalizado e humilhado, vingava-se depenicando ostensivamente, mas sem apetite, os requintes de gastronomia papagaial de que, por mão de minha mãe e das criadas, a gaiola dele estava sempre cheia. Uma tarde, não precisei fazer mais que um leve movimento de ombro. O Verde saltou para cima do Cinzento e, em três tempos, deu-lhe uma sova que o pôs no canto da gaiola que depois pilhou conscienciosamente, virando, para despejá-los, o bebedouro e o comedouro, e varrendo para o chão da varanda, à força de asas, patas e bico, tudo o que se derramara ou estava pousado no fundo da gaiola. O outro, olhando de banda, não se atrevia a um gesto; e o Papagaio Verde voltou para o meu ombro, sem querer tocar, para comê-lo, num grão do milho fino com que o outro se regalava.
Quando eu ia para a escola, acompanhando submissamente, até à última esquina de onde se via minha mãe de atalaia à janela, a criada que era mandada a comboiar-me para impedir que eu me perdesse nas ruas ou entre a garotada do meu bairro, e fugindo dela a correr, mal era voltada a esquina, para escapar-me ao perigo incalculável de os meus colegas perceberem que a criada me trazia (e esta convenção de fugir às respectivas criadas para negar-lhes a guarda era tácita entre muitos dos meninos, e as criadas, à hora da saída, ficavam conversando nas esquinas distantes, a coberto das pedradas com que seriam recebidas, se se aproximassem aquém dos limites convencionais da sua não-existência), o papagaio vinha até à porta do patamar, a despedir-se de mim, e o mesmo fazia quando, à tarde, depois de lanchar, eu saía para a lição daquele pescoço em que não via sinais de guilhotina. Estas despedidas eram uma perfídia minha, nas vezes em que não ia, como me pediam que fosse, deixá-lo preso. Divertia-me saber que se fechavam à espera que ele, caminhando solene pelo corredor e arrastando chiadamente no oleado a corrente, voltasse honestamente à gaiola, onde ficava, sem ser preso, aguardando o meu retorno.
Depois, meu pai regressava novamente. As luas-de-mel eram agora curtas, rápidas, tumultuosas, com minha mãe protestando lá dentro, em gritos que chamavam porco e infame ao meu pai. Às vezes, a frágil paz quebrava-se logo no jantar de família, nesse mesmo dia, com meu pai levantando-se pela mesa fora e atirando a cadeira, ou com minha mãe chorando diante da travessa encalhada na mesa, entre um prato cheio e outro vazio. Palavras viperinas circulavam, meus tios levantavam-se também, com uma autoridade moral de que compensavam a sujeição dos muitos auxílios e jantares que meu pai lhes dava. Eram, aliás, parentes por parte dele, embora pessoas cuja interferência, nos negócios domésticos, ia aumentando com a violência das disputas; muitas vezes, naqueles escassos quinze dias, uma das criadas, de noite, levantava-se para ir chamar meu tio, que não morava longe e vinha sonolento, com umas calças enfiadas por cima do pijama e um sobretudo de gola levantada, conversar pacientemente, ora com minha mãe que, em «robe de chambre» suspirava sentada na sala de jantar, ora com meu pai que, passeando pesadamente no corredor até que os vizinhos de baixo viessem protestar contra o barulho, proclamava que não precisava de nós para nada, tinha a bordo todos os confortos, que nos levasse o diabo.
Eu, na cama, ouvia tudo aquilo, quando não era expressamente convocado a participar, por minha mãe que vinha acordar-me «para fugirmos os dois», ou por meu pai que me sacudia para dizer-me «que minha mãe era doida, que o odiava, que me ensinava a ter-lhe ódio». Com sono, farto de cenas sem novidade alguma, cujas marcações e deixas eu sabia de cor, eu tinha ódio a ambos, por sob o medo imenso que ambos me metiam, a puxarem cada um por um braço meu, cada qual exigindo que eu desmentisse o outro. Uma vez, minha mãe vestiu-me apressadamente e vestiu-se depressa também, com meu pai, no corredor, de faca da cozinha em punho, e as criadas nas sombras da porta do «quarto escuro» espreitando. Fui informado de que íamos sair para nos deitarmos ao rio, nos afogarmos. À porta, entre gargalhadas do meu pai, eu recusei-me terminantemente a sair, declarando que estava muito frio. E meu pai, brandindo a faca—que era para suicidar-se, ou para matar minha mãe, ou para liquidar-me a mim, conforme as oportunidades daquela «commedia dell’arte»—avançou para minha mãe. Eu dei-lhe um pontapé no baixo-ventre, que o fez, num urro, largar a faca que apanhei. E as criadas e minha mãe tiveram de interpor-se entre ele e mim, até que uma das criadas, abrindo a porta da rua, se esgueirou, comigo pela mão, desarmando-me, e levando-me para a avenida, onde o dia clareava, e os grandes carros de bois, cobertos de hortaliça muito arrumadinha, desciam chiando a caminho do mercado. A criada falava docemente comigo, dizendo-me que o que eu fizera não se fazia, era uma grande maldade, uma grande falta de respeito. Eu, abaixando a boca, mordi-lhe a mão. E ficámos passeando para baixo e para cima, ela surpresa e dolorida atrás de mim, porque me estimava muito, e eu, à frente, dando pontapés aos detritos que havia no passeio, entornando caixotes de lixo, que estavam nas portas, e urinando contra as árvores como faziam os cães.
Daí em diante, nas questões nocturnas, quando meu tio vinha, no seu sobretudo escuro, negociar que minha mãe não teimasse em dormir na minha cama, de que eu arrepanhava a roupa, ou que meu pai não brandisse facas, acabavam sempre os três por discutir-me acaloradamente, a dois contra um, conforme os argumentos, como se eu, «que levantara a mão contra meu pai», fosse o criminoso, o culpado daquilo tudo. Eu, às vezes, saltava da cama, vinha encostar-me à ombreira da sala de jantar, e pela frincha via-os sentados à volta da mesa, cada qual argumentando com motivações que eu não sonhara ter tido, com malefícios que me não lembrava de ter praticado, ou combinando planos de educação para conterem os meus instintos. Eu ficava atemorizado e trémulo, ouvindo falar de colégios internos, de proibições de brincadeiras, de suspensão das lições de piano, coisas piores.
No dia seguinte, pela manhã, trôpego de sono e inquietação, eu ia para a escola, onde não era mais feliz. Afastados rispidamente da minha casa que não frequentavam, como eu não frequentava a deles, os meus colegas detestavam a minha incapacidade de comunicar, o meu isolamento estudioso e vago que não procurava aliados nem confidentes. Eu era menos rico do que a maioria deles, e vestia-me com um aprimoramento desmazelado que não mantinha a distância que os primores despertam, nem a camaradagem a que o desmazelo convida. E, bem mais vezes que a outros mais peraltas, me atacavam para sujar-me, ripostando eu com uma raiva que não era das regras do jogo, porque eu procurava ansiosamente agredir, com ímpetos assassinos.
À tarde, eu voltava para casa, fechava-me na sala, com o piano e o Papagaio Verde, até ao momento em que, estando meu pai, ele batia à porta. Tocava as músicas que preferia, ou ficava compondo repetidamente melodias que se pareciam com tudo o que eu ouvira de triste, e o Papagaio não pousava já nas costas da cadeira, mas na borda extrema do teclado, de onde seguia os movimentos das minhas mãos, e descia às vezes para as teclas, ensaiando uns passos que eu fazia sonoros no calcar das teclas descidas. Isto divertia-o, e ele simulava um grande espanto, olhando a um lado e outro, soltando «ohs, ohs», e ficando com um pé no ar, um pé hesitante que fingia temer o som da tecla seguinte. Então, eu retirava-o para a borda, e tocava estudos e escalas. O Papagaio dormitava desatento. De súbito, eu feria dois ou três acordes de algumas músicas suas predilectas. Imediatamente se arrepiava na expectativa, de olho arregalado, e cantava e dançava até ao fim, abrindo as asas. Quando eu concluía numa catadupa de acordes extras, os gritos dele eram de aplauso que exigia bis. Eu repetia uma e duas vezes, até que uma angústia de exprimir-me me embargava os dedos, eu pousava a cabeça nas teclas, e esperava que ele viesse, pé ante pé, catar-me na cabeça o piolhinho.
Não chegara ainda à adolescência, quando o Papagaio Verde adoeceu, a princípio muito levemente, de uma pequena boqueira no canto do bico, e que manifestamente o incomodava. Só a minha presença, a minha voz, os meus afagos, o arrancavam da sonolência gemente em que se confinava ao canto do poleiro. Pouco a pouco, a boqueira alastrou em refegos para os lados do bico, avançou em direcção à poupa azul e à fina pálpebra que se mantinha semicerrada. Mal podia abrir o bico, para comer; mal podia firmá-lo, para descer ou subir. Tinha tonturas, vagados que o aterrorizavam e surpreendiam, e acabaram por fazê-lo temer o poleiro de onde quase caía. Foi preciso ter sempre a gaiola no chão. Ele, que às vezes audazmente pulava para a grade da varanda e olhava de alto para o quintal lá em baixo, não se atrevia agora, senão de vez em quando, a aproximar-se, num relance saudoso, da beira da varanda. E, arrastando o pé, voltava para o canto da gaiola. Eu, e minha mãe também, a meu pedido, tratávamos dele, lavando-lhe com um algodão embebido em borato aquela chaga que não era bem chaga, e antes parecia um alastrar de lava pregueada e ressequida. O Papagaio Verde não deixava que minha mãe lhe fizesse o curativo, se eu não estivesse ao lado. Com paciência, falando-lhe carinhosamente, partindo tudo em pedacinhos, eu insistia para que ele comesse. Quase que para me agradar, ele acedia, num esforço infinito, em comer alguma coisa. Dava-lhe de beber, e a água escorria pelos cantos do bico. Foi então que, no meu colo, ele deu em recordar teimosamente, com escândalo de minha mãe que deixou de tratá-lo, o reportório antigo. Murmuradamente dizia de enfiada coisas que eu nunca lhe ouvira, frases, ordens de navegação e manobra, palavrões, palavras em línguas que eu não reconhecia. Como em sonhos, recostado nos meus braços, arrepiando-se às vezes, repetia sem descanso tudo o que decorara na sua longa vida, e o que não decorara, e o que ouvira no convés de navios, em portos de todo o mundo, entre a marinhagem de todas as cores. A sua verdura, agora tão esmaecida e pelada, tão rica, desdobrava-se em ondulações de vagas, em apitos de manobra, em pregões marinhos, em linguajares que tinham no seu som estalado a fúria e o tumulto dos trópicos multicores e a amplidão azul dos mares espumejantes. Era uma ardência mecânica que eu escutava debruçado sobre ele, e se ilustrava, na minha imaginação, de velhas gravuras com índios de penas na cabeça e grandes barcos ancorados em baías de água lisa e límpida em que se espelhavam. Mas era também uma confiança de que, em sacões abruptos, um dos seus pezinhos se apertava no meu dedo, como quem se agarra à vida e transmite a um amigo a derradeira mensagem. Isto durou semanas que me fizeram às vezes faltar às aulas, não ouvir ninguém, não notar ninguém, ocupado em escutar e receber aquela vida que se extinguia. Eu saía a correr da escola que não me dava conta de frequentar, temendo não encontrá-lo ainda vivo. Mas lá estava, agora meio deitado no canto da gaiola, para apertar na pata o meu dedo. O sofrimento dele devia ser horrível: tão grande que, apesar da docilidade com que deixava eu fazer-lhe o curativo inútil, suspendi aquelas lavagens que o torturavam mais. Não era, porém, só a ferida, se era ferida, o que lhe doía. Era-lhe igualmente dolorosa a perda do seu garbo, da sua altivez, da elegância majestosa das suas penas brilhantes. Quantas vezes, arrastando-se, ele tentava erguer-se nas pernas e nos músculos fracos, para, de cabeça ao alto, com o olho já afogado no mal que o roía, espanejar-se ainda, olhar-me com amistosa sobranceria, ensaiar um começo de cantiga. Logo recaía na dormência falante, em que arrepios ligeiros o percorriam para terminarem num aperto de pata no meu dedo. Eu levava-o para o pé do piano, acomodava-o em almofadas na cadeira, tocava-lhe as suas músicas. Ele agitava-se num contentamento longínquo, de quem já não ouvia bem e se despegava do mundo, e recostava na almofada a cabecita, no estertor roufenho que era a sua conversa solitária, onde palavras mal se distinguiam.
Um dia, quando, arquejante da rua e das escadas, cheguei à varanda, o Papagaio Verde estava inerte no canto da gaiola, com o bico pousado no chão. Peguei-lhe, aspergi-o com água, sacudi-o, com a mão auscultei-o longamente. Não morrera ainda. Levei-o para a sala, deitei-o nas almofadas, puxei a cadeira para junto do piano, e, enquanto com os dedos da mão esquerda lhe apertava a pata, toquei só com a direita a música de que ele gostava mais. As lágrimas embaciavam-me as teclas, não me deixavam ver distintamente. Senti que os dedos dele apertavam os meus. Ajoelhei-me junto da cadeira, debruçado sobre ele, e as unhas dele cravaram-se-me no dedo. Mexeu a cabeça, abriu para mim um olho espantado, resmoneou ciciadas algumas sílabas soltas. Depois, ficou imóvel, só com o peito alteando-se numa respiração irregular e funda. Então abriu descaidamente as asas e tentou voltar-se. Ajudei-o, e estendeu o bico para mim. Amparei-o pousado no braço da cadeira, onde as patas não tinham força de agarrar-se. Quis endireitar-se, não pôde, nem mesmo apoiado nas minhas mãos. Voltei a deitá-lo nas almofadas, apertou-me com força o dedo na sua pata, e disse numa voz clara e nítida, dos seus bons tempos de chamar os vendedores que passavam na rua:—Filhos da puta!—Eu afaguei-o suavemente, chorando, e senti que a pata esmorecia no meu dedo. Foi a primeira pessoa que eu vi morrer. Consegui que os vizinhos de baixo mo deixassem enterrar no extremo do quintal. Embrulhei-o num pano, procurei desesperadamente uma caixa que lhe servisse, atravessei pé ante pé a casa dos meus cerimoniosos vizinhos, desci ao quintal com a caixa debaixo do braço, escavei uma cova bem funda, depus a caixa, tapei-a, calcando a terra, e juntei-lhe em cima um montinho de pedras, com flores disfarçadamente surripiadas ao canteiro, entaladas entre elas. E, da varanda, em dias seguidos, eu contemplava aquela sepultura pequenina, adjacente à imensa empena do prédio contíguo, e que a cerimónia havida com os vizinhos não me permitia de cuidar. Vieram chuvas, veio o jardineiro, a sepultura desapareceu. Mas eu sabia, pelas manchas na empena sobranceira, onde ela estava, e adivinhava, sob o canteiro florido, o meu Papagaio Verde.
A minha solidão tornara-se total. Meu pai ia e vinha, sem que sequer a chegada das bagagens me incitasse a reconhecer-lhe a presença mítica. E, na bisonhice que eu cultivava contra tudo e todos, como na sobranceria com que me mostrava ostensivamente agoniado num regime doméstico que, de viagem para viagem, se azedava, havia como que uma herança espiritual de bicadas abruptas. Cheguei mesmo a torturar o Papagaio Cinzento.
Uma tarde, à mesa, estalou a discussão entre meu pai e minha mãe, precisamente num jantar de chegada, a que, como de costume, meus tios assistiam. Eu declarei categoricamente que os detestava a todos, e, atirando com a cadeira por imitação de violência, levantei-me para a varanda, perseguido por um bofetão de meu tio. Lutei contra ele que me agarrava, e contra meu pai que o agarrava a ele, e contra minha mãe que agarrava meu pai, e contra a minha tia que os agarrava a todos; e vendo, num relance enublado, aquele cacho humano a disputar-se a primazia de castigar-me, a voz embargou-se-me em gritos de choro desatado:—Ninguém é meu amigo, ninguém é meu amigo . . . Só o Papagaio Verde é meu amigo.
A luta suspendeu-se numa gargalhada alvar, que escorria babada pelos guardanapos deles. Eu fiquei de costas, buscando com os olhos, lá em baixo, no quintal, o recanto em que jazia o Papagaio. E ouvi distintamente a sua voz aguda e clara, dominadora e viril, sarcástica e displicente, raivosa e cheia de carácter, a proclamar, num grande voo de asas verdes, o juízo final que murmurara ao morrer. Não eram. Em verdade, não eram sequer isso, cujo sentido eu não sabia então claramente. A vida, desde então, não me esclareceu muito; mas creio firmemente que, se há anjos-da-guarda, o meu tem asas verdes, e sabe, para consolar-me nas horas mais amargas, os mais rudes palavrões dos sete mares.
Que o Papagaio Verde era brasileiro, como angolano o Cinzento, foi dos primeiros axiomas de biologia, que aprendi. Era sempre repetido, categórica e sacramentalmente, por meu pai ou por minha mãe, quando, em jantares de família, se discutiam as graças relativas dos dois bichos, e havia sempre um tio meu para condenar, em nome dos perigos da psitacose, a posse de seres tão exóticos, portadores prováveis e espontâneos de uma doença estranha, mortalíssima, que eu, criança à espera de vez para a carne assada, imaginava como a instalação crónica, no organismo dos adultos, daquela tendência manifesta para falarem de cor e a despropósito, coisa que os papagaios quase não faziam. Mas o caso é que, verdes e papagaios, só no Brasil; papagaios e cinzentos, só na África, e ainda hoje não sei se isto é verdade ou mentira. Outro axioma era que os papagaios comiam milho, do que eu concluía (e creio que o meu subconsciente ainda guarda essa conclusão) que a ingestão de milho era um sinal dos infalíveis para distinguir as pessoas e os papagaios.
No começo das minhas memórias de infância, o Papagaio Verde era um animal fabuloso que me recebia aos gritos, enquanto dava voltas no poleiro, trocando os pés, e me olhava de alto com um olho superciliar, e de bico entreaberto. Quando comecei a vê-lo, via-o muito pouco, já que ele vivia na «varanda da cozinha», que me era proibida por causa das torneiras, como a cozinha o era por causa do lume. Ficávamos, quando eu conseguia iludir as vigilâncias, ou subornar o cordão sanitário, os dois numa contemplação embebida: eu, de mãos nos bolsos do bibe de quadradinhos azuis e brancos (que era o uniforme do meu presídio), e ele, com a gaiola pendurada alta, entreabrindo as asas para um voo um tanto ameaçador, com a cabeça de banda, e soltando uma espécie de grunhido que culminava num arrepio que o eriçava todo. Que era brasileiro e fora trazido do Brasil, eu sabia. Mas, antes de ser posto naquela varanda, onde parecia, numa casa triste e soturna, uma nódoa insólita, obscenamente garrida, viajara muito. Vivera a bordo de navios, cheirara longamente o mar, não a maresia ribeirinha, mas os ventos do largo, prenhes de fina espuma e de um ardor de andanças. Algo disso ficaria nele, e era um jeito de balancear-se no poleiro sem levantar nenhuma das patas, sem alterná-las como o Cinzento fazia. E também uma bonomia astuciosa, egoísta, irónica, subjacente ao ímpeto altivo do seu pescoço amarelo e da sua poupa azul. Ficara-lhe, além disso, um reportório bravo, truculento, metaforicamente expressivo, que era o principal motivo do confinamento discreto à varanda da cozinha. Ele, pouco a pouco, ia esquecendo aqueles horrores que minha mãe não queria que eu ouvisse, e só os recordava em catadupa, nas suas horas de tédio mais sonhador, em que os dizia entrebico, ou nos momentos de furiosa irritação, em que, parecendo uma águia (achava eu) imponentíssima, vomitava impropérios que escandalizavam a vizinhança e dobravam de riso as criadas, o que o irritava mais. Não foi assim, na escola ou na rua, que eu aprendi os nobres palavrões essenciais à vida, embora me ficasse, para aprender depois, algum sentido deles. Aliás, este sentido eu ia aprendendo adivinhadamente nas discussões domésticas à porta fechada, entre minha mãe e meu pai, quando ele, do outro lado da porta, os bradava, e muito explicados em frases elucidativas.
Meu pai era uma personagem mítica que eu quase só via à hora de jantar, durante uns quinze dias, de três em três meses. A sua chegada era prenunciada por um cheiro a encerados e a pó espanejado, que se espalhava pela casa toda, cujas portadas de janela se semicerravam como para conservar, em estado de graça e de jazigo de família, aquele ambiente de silêncio e treva premonitória. Não se sabia nunca ao certo essa chegada. Ele não escrevia senão de raro em raro, e minha mãe, para calcular a demora da viagem, ia de vez em quando, comigo pela mão, aos portais da Companhia de Navegação ver, no quadro onde registavam o movimento dos barcos, em que porto das Africas o navio de meu pai saíra ou entrara. Quando eu já sabia ler, mandava-me lá dentro a mim, e ficava-se meia oculta na esquina da rua, creio que para, aos empregados que a conheciam, não mostrar que não sabia mesmo onde o marido andava. Telefonar, e não tínhamos telefone, não lhe ocorria; apresentar-se de cabeça erguida fosse onde fosse era contra os seus princípios. E, muito provavelmente, nem os empregados se lembrariam de achar estranho que ela, ainda que muitas cartas recebesse naquele tempo sem aviões, fosse ver a rota do navio. Eu, a quem tantos compartimentos da casa eram defesos, ficava durante e após as limpezas, e até ao dia da chegada, encurralado de todo, e sem nada que sujasse ou me sujasse. E odiava aquela expectativa, ao mesmo tempo que esperava curiosamente o que meu pai traria: caixotes de vinho da Madeira, cachos de bananas, frutas várias em cestas, às vezes manipansos dos pretos, que me eram dados para eu brincar. Um dia, era o movimento na escada da casa, que, chefiados pelo criado de meu pai, o criado encasacado de branco e privativo do comandante, vários homens subiam ajoujados, entalando na porta, resfolegantes e trôpegos, os malões enormes, os caixotes, e as cestas, que ficavam no corredor e atravancavam tudo. Ao cheiro dos encerados e das solarinas, sobrepunha-se então o das frutas exóticas, o da palha dos caixotes, o do bafio dos malões, que tudo, apesar de sempre igual, eu queria abrir, tocar e ver. Nunca me deixaram abrir, tocar ou ver coisa nenhuma; e eu ficava entreportas, olhando o avolumar das palhas de que emergiam frutos e baratas saltavam, às corridas logo pelo corredor fora, perseguidas pelos gritos de minha mãe e das criadas, atarantadamente todas esgrimindo vassouras e dando com elas pancadas desatinadas. Em geral, para gosto meu, as baratas escapavam-se. Depois, era uma expectativa meio nervosa, com muitos “o papá está a chegar” e muitas espreitadelas para a rua, a vermos se ele assomava ao virar a esquina. Até que, com o seu andar balanceado, a estatura corpulenta aparecia atravessando a rua, chapéu de feltro de aba revirada e debruada a seda, bengala com aplicações de prata, charuto havano empinado na boca. Minha mãe, sem dizer da janela um adeuzinho prévio, ia logo abrir do patamar a porta da rua, puxando—e eu queria sempre puxar—a transmissão metálica e primitiva que levantava o trinco. E ficava perfilada, segurando-me a curiosidade indiferente com que eu queria debruçar-me do corrimão, e largando-me só quando meu pai já vinha no último lanço da escada. Então, subitamente intimidado, eu descia dois ou três degraus; meu pai—«Então como vai o nosso homem?»—roçava-me na testa uns lábios frios e o bigode esverdinhado, farto e retorcido nas pontas que ele frisava, e parava ao pé da minha mãe, sem jeito de abraçá-la. Ficavam assim diante um do outro, a olharem-se, e eu erguendo os olhos por entre eles, até que meu pai a agarrava pela cintura, o espaço entre ambos desaparecia, e minha mãe deixava-se pousar a cabeça no ombro dele. Davam-se então um beijo logo fugidio—«Olha o pequeno», dizia minha mãe—e entravam para o corredor, ambos muito comprometidos, sem se olharem nem me olharem a mim. As criadas apareciam à porta da cozinha, num arquejar de peitos excitados e de olhares risonhos, a que meu pai atirava um sobranceiro «olá», e entrávamos para a sala, com o sofá e as poltronas baixas de bolinhas que os «Mimosos» arrancavam uma a uma, eu ficava no meio da casa, ora num pé ora noutro, com uma vontade imensa de fazer «chichi», e meu pai sentava-se na borda do sofá, enquanto minha mãe se sentava na borda de uma das poltronas. Trocavam então algumas informações: quem desta vez aparecera em Luanda ou no Lobito, recomendações acerca das fardas brancas, que tinham de ser todas lavadas e engomadas, enumeração de quem oferecera os caixotes, as frutas, os cachos de bananas. Minha mãe contava, por alíneas, sem explicações nem comentários, os acontecimentos da família, as doenças que eu tivera, queixava-se de como passara desta vez, tão mal do coração. Ele ouvia distraidamente, como uma visita de cerimónia, mas ainda de chapéu na cabeça, e com as mãos na curva da bengala. Às vezes uma das mãos levantava-se para cofiar e retorcer uma das pontas do bigode. Minha mãe, então, levantava-se, como se fosse para despedi-lo, e tirava-lhe da cabeça o chapéu, e das mãos a bengala. A careca dele, pontuda e luzidia, brilhava. Ele levantava–se também, vinham até ao corredor, e observavam ambos as cestas e os malões. Novamente meu pai enumerava os obséquios que recebera, e aproveitava para informar de qualquer pedido que lhe fora feito pela parentela africana de minha mãe, uma passagem gratuita, de um porto para outro, ou de como haviam ido a bordo para comer-lhe o almoço. Demoras nas falas e nos gestos de ambos prolongavam um mal-estar que se transmitia. Meu pai, agarrando minha mãe, começava a arrastá-la para o quarto deles. Minha mãe esquivava-se, ele tirava-lhe das mãos o chapéu e a bengala, que pendurava no bengaleiro, e ia para o quarto pôr-se à vontade. Ela ia à cozinha extremamente embaraçada, e cada vez mais o ficava por ele a chamar lá de dentro, com insistência. Ele a chamar, ela a repetir pela centésima vez naquele dia as instruções para o jantar. Viriam meus tios, como sempre; e os cristais e os talheres, saídos já do guarda-prata e do aparador, apinhavam-se no mármore desses dois móveis, na sala de jantar; era outra das ritualísticas decisões que se tomavam de três em três meses. A voz do meu pai vinha insistente, cada vez mais berrada. Cabisbaixa, minha mãe interrompia as observações, e ia pelo corredor fora em direcção ao quarto. À porta, meu pai em ceroulas de fitas e em fralda esperava, e tinha de puxá-la para dentro. A chave rangia e estalava na fechadura. As criadas trocavam olhares, levavam-me para a varanda, onde o Papagaio Verde, na sua gaiola, subia e descia afanosamente do poleiro, segurando-se com o bico e alçando a perna. Não estava em causa que ele desse o pé a ninguém, a não ser a uma ponta de pau de vassoura, que eu lhe apresentava. Olhando-me de revés, condescendia em pousar de leve um pé trémulo na ponta do pau, enquanto eu repetia: «Papagaio Real, quem passa?»—para ele se dignar dizer: «É o Rei . . . É o Rei…», como se não soubesse o resto. E, de súbito, casquinava estrondosamente, sacudia-se, e cantava desaforadamente uma das cantigas em voga. Mal as criadas vinham, rindo, acompanhá-lo, calava-se logo, quieto e sério, fitando-as de bico entreaberto.
Foi por essa altura que a nossa amizade se estabeleceu. As luas-de-mel de meus pais duravam poucos dias, pelo menos com aquela atmosfera de porta e janela fechada em pleno sol e de passos leves das criadas, durante a vigência da qual eu—esquecido, ou mais distantemente tratado, porque minha mãe, quando saía lá de dentro, andava chorosa pelos cantos e não me chamava muito—eu ficava mais livre, entretidas as criadas numa escuta maliciosa ou no «far niente» das tarefas inacabadas. Mas duravam, com efeito, pouco, e logo, quase sem transição, passavam à violência do temporal desfeito, para o que também a porta se fechava, às vezes com safanões à porta e competições pela posse da chave, e lá dentro do quarto havia gritos de ambos, frases sibiladas raivosamente, soluços e ais de minha mãe, até que, num repente, a porta abria-se para as criadas, já a postos, acudirem, com a água de flor de laranja, à minha mãe que, estendida na cama, muito pálida, soltava leves ais de mão no coração. Eu esgueirava-me pelo meio do tumulto, sem que ninguém reparasse em mim, e era em geral minha mãe, abrindo os olhos, quem me enxergava, suspirava mais soluçadamente, e estendia para mim mãos trémulas e dramáticas que solicitavam a minha conivência, a minha aliança, e das quais eu recuava tonto, com repugnância. E era meu pai quem me empurrava para elas, como uma espécie de plenipotenciário, encarregado de negociar a paz de uma guerra cujas causas eu não entendia, mas de que me sentia, sem o saber, o campónio que vê os exércitos inimigos devastarem-lhe a seara, uma pequena horta, um pobre jardim. Aliás, por isso, a situação de plenipotenciário tinha, pela jogada impotência e pela passividade disputada, muito mais de um refém que de um embaixador. Ninguém me perguntava ou me ensinava a perguntar o que eu queria ou o que eu pensava; e ambos, como os aliados, e os pacificadores, as terceiras forças de «cruz vermelha» e neutralismo, que às vezes eram invocadas (quando não eram arrastadas nos acontecimentos), afinal me ignoravam. E, tão depressa quanto era empurrado para os braços trémulos, era retirado deles e posto de lado, fora da porta, como a bandeira branca que, depois de brandida e de surtir efeito, fica no chão, entre os cadáveres, as cápsulas, o lixo das guerras modestas e localizadas.
Eu ia para a varanda conversar com o Papagaio Verde, não para lhe contar desditas que claramente não entrevia, mas para comungar numa idêntica solidão acorrentada. Eu saía muito pouco, a rua era-me proibida, primos meus vinham às vezes brincar comigo. As brincadeiras, porém, constantemente interrompidas por minha mãe, a quem era preciso pedir licença para ir buscar ao «quarto escuro» o caixote dos brinquedos (o «quarto escuro» era, também, o misterioso reduto-alcova das criadas, cuja intimidade constituía outro mistério estranho), não tinham graça nem entusiasmo, e degeneravam sempre em brigas sem motivo, em que se opunham o meu anseio de brincar tudo ao mesmo tempo, e a absorção com que meus primos se dedicavam exclusivamente a algum instrumento de brincar, que eles não possuíssem e os seduzisse mais. Quando essas brigas estalavam, minha mãe mandava-os embora, e eu ficava dias e dias remoendo uma autoritária cólera insatisfeita, e esperando (de ideia fixa e numa insistência cuidadosa, para que minha mãe logo a não contrariasse) que eles voltassem. Fui, por extensão, pouco a pouco, sem cálculo nem método, conquistando o Papagaio Verde, e, ao mesmo tempo, o respeito já lendário que ele impusera à sua volta. Sem largar o poleiro, e olhando ironicamente para o meu dedo, ele dava-me o pé; cantava comigo, aceitava da minha mão alguma das coisas, como um talo de couve, que ele apreciava. Fui descobrindo que, na verdade, ele não apreciava muito esses talos que, solícito, eu lhe metia no pé. Mais por delicadeza que por gosto, mais para aproveitar a oportunidade de despedaçar metodicamente um objecto (que a gaiola com poleiro de folha, e a distância a que era posto de quanto fosse roível, não lhe consentiam), é que ele aceitava essas dádivas. Não as comia; com bicadas certeiras e calmas, que intercalava de laterais olhadelas para mim, partia tudo em bocadinhos que tombavam na gaiola ou no chão. Terminada a cerimónia, descia do poleiro, e continuava na borda da gaiola uma segunda fase que era escolher dos caídos pedaços, aqueles que ainda podiam ser, sem muito esforço, reduzidos a tamanho menor. Contemplava, então, de olho grave e atento, a extensão da devastação que fizera. Então, abrindo as asas e esticando o pescoço, sacudia-se de penas eriçadas, catava no alto da poupa azul um piolhinho (para o que erguia, à cabeça baixa, um dedo cuja unha coçava suavemente por entre as penas), sacudia-se de novo, subia para o poleiro, assentava-se nele, assentava nos ombros a cabeça, e fechava os olhos. Era o sinal de que eu me retirasse, de que a minha visita acabara. Com a ponta da vassoura, após esperar que a respiração dele fosse pausada e funda no peito verde, eu tocava-lhe. Ele fazia de conta que não dava por isso, era preciso tocar-lhe vezes seguidas, enfiar-lhe o cabo da vassoura por baixo das asas. Até que tudo isto se repetia como uma cena previamente ensaiada entre nós. Fingindo-se ele distraído e indiferente, retraído e alheio, eu teimava com o cabo da vassoura; e ele, subitamente, disparava um voo circular na ponta da corrente, pousava de esguelha no pau empinado, com as asas semiabertas numa imitação de procurado equilíbrio, e cantava, gargalhando e dando estalinhos com a língua.
As criadas tinham raiva daquele entendimento que ele não lhes concedera nunca, com uma altivez senhorial que tornava difícil lavar lhe a gaiola posta para isso no chão da varanda, ou deitar-lhe água e comida nos recipientes pendurados de cada lado do poleiro. E, raivosas, faltavam-lhe ao respeito, tocando-lhe com a vassoura na cauda, a pretexto de varrerem melhor um recanto, ou despejando, numa pontaria falsamente errada, água por cima dele. Furioso, subia a empoleirar-se no espaldar da gaiola, de onde, sem dar muita confiança de perder a cabeça, lhes fazia arremessos temerosos: mas, às vezes, perdia-a mesmo, e então, veloz, com o pé esticado numa corrente que arrastava a gaiola, agarrava uma ponta de chinelo que, aos gritos, muito trémulo, não largava das patas e do bico. Uma vez, a fúria foi tal que só a jarros de água o largou, ficando semidesmaiado, tremente de exaustão nervosa e de frio, a gemer uma ladainha triste e rouca, em que havia, dispersos, alguns palavrões adequados. Dessa vez, deixou que eu lhe acudisse, o enxugasse com um pano, lhe penteasse as penas tão indignamente ricas, tão enegrecidas do forçado banho. Daí em diante, foi que a nossa leal camaradagem se firmou, sem hesitações nem reservas.
Certa manhã, quando me levantei, havia na cozinha um movimento desusado, gritos, uma atmosfera de pânico. Provavelmente, essa atmosfera despertara-me. Fui ver. O Papagaio Verde estava solto! Passeando para cá e para lá no chão, arrastando uma ponta de corrente, o Papagaio proibia que a porta da varanda se abrisse, e esvoaçava ameaçador contra a greta que nas portadas as criadas tentassem. Eu queria passar para fora, minha mãe que acudira ao tumulto segurava-me, o Papagaio berrava. As criadas repetiam que ele fugira, fugira! Eu achava que, se tivesse fugido, teria voado para as árvores do quintal subjacente. E desmenti. E, lutando esgatanhadamente contra todas, abri as vidraças da varanda. Afugentando para o corredor a minha mãe e as criadas, que pela porta entreaberta da cozinha observavam o terrível incidente de que eu sairia mortalmente ferido («com um olho vazado», clamava minha mãe em ânsias), o Papagaio entrou, dando ao corpo nos requebros de avançar, mal espalmados no chão os dedos, a passos largos, direito a mim, que, contagiado levemente pelo pânico daquelas galinhas, recuara. E veio até aos meus pés, e fez contra um meu sapato, com doçura e ternura, aquele gesto de afiar lateralmente o bico, que fazia às vezes na borda da gaiola. Abaixei-me para lhe pegar. Ele deixou que o agarrasse, instalou-se num meu dedo, e pesava.
Que dia triunfal! Meu pai partira já, dessa vez, no torvelinho dos malões e dos engomados, com o criado de casaco branco, muito tímido entreportas, a dirigir a saída da bagagem. Houvera as despedidas do costume, com meu pai acabando por tirar da algibeira um envelope branco que pousava em cima do «toilette» e era o dinheiro para três meses de ausência. Houvera a contagem do dinheiro, por minha mãe, e o regateio mútuo sobre se chegavam ou não aquelas notas. Depois os beijos e abraços, a ida à janela da sala para dizer-se o adeus final. E eu recomeçara, aos fins de tarde, as idas a casa da Dona Antonieta, para a lição de piano, que a família toda, com meu pai à frente, achava uma indignidade mulheril, e que era a única manifestação de teimosa independência por parte da minha mãe. Para mim, a Dona Antonieta era uma pessoa que eu me espantava de afinal não ter sido decapitada, realengamente, na Revolução Francesa; e o piano era triplo e delicioso pretexto para fazer o contrário do que queria a maioria numerosa dos meus tutores honorários, para penetrar na sala obscura e proibida onde o nosso piano estava aguitarrando-se na solidão húmida, e para ficar sonhadoramente compondo, curvado sobre as teclas amareladas, as sinfonias que me tornariam livre, célebre, distante de tudo e todos.
Com o Papagaio no dedo, avancei pelo corredor fora em direcção à sala, seguido pelo cortejo receoso que náo ousava deter-me, porque o bicho abria para elas um bico desmedido. Abri a porta, entrei, escancarei de par em par as portadas (e, para lutar com os fechos, tive de pousar no chão o Papagaio que logo esvoaçou para a porta, a conter o avanço das tropas perseguidoras), fui fechar a porta, sentei-me no banco do piano que abri, depois de levantar a colcha indiana que o cobria e cujas franjas sempre se enguiçavam na tampa. Concentrando-me, desferi acordes tumultuosos e dissonantes, com trémulos rotundos nas oitavas baixas e glissandos nas esganiçadas. O Papagaio, numa atrapalhação precipitada, subiu para as costas da cadeira mais próxima, e espanejou-se, e acompanhava, dançando e gritando uma melopeia desafinada, a minha música sem nexo. E, de vez em quando, para maior alegria minha, largava escagarrichadamente pelo estofo da cadeira, que assim se degradava, as suas dejecções acinzentadas.
Não houve mais contê-lo. Eu próprio o prendia e soltava da gaiola, e ele esperava com paciência as horas em que iria buscá-lo para o trazer à sala. Minha mãe e as criadas não se atreviam a intervir, e eu ouvira já conspirações que assassinavam o Papagaio, o exilavam para longes casas. Mas, quando eu o soltava, e ele andava por toda a parte atrás de mim, tudo ficava por nossa conta: minha mãe fechava-se no quarto, as criadas fechavam-se na cozinha. Uma das nossas diversões era um pequeno trapézio que eu criara para ele, suspenso da bandeira, sem vidraça, da porta do «quarto escuro». O Papagaio, ensinado por mim, saltava do trapézio balouçante para a vassoura que eu atravessava na frente; e, de cada vez que o pouso se realizava com precisa elegância, a sua alegria não tinha limites. Às vezes, íamos ambos à varanda da sala de jantar visitar o Papagaio Cinzento. Este, da sua gaiola, olhava-nos com chocado pasmo, e ensaiava uma dança tonta de criatura a quem acendessem, de súbito, uma luz forte. O Papagaio Verde, pousado no meu ombro, arreliava-o com gritinhos e mordidelas carinhosas na minha orelha; e o outro, escandalizado e humilhado, vingava-se depenicando ostensivamente, mas sem apetite, os requintes de gastronomia papagaial de que, por mão de minha mãe e das criadas, a gaiola dele estava sempre cheia. Uma tarde, não precisei fazer mais que um leve movimento de ombro. O Verde saltou para cima do Cinzento e, em três tempos, deu-lhe uma sova que o pôs no canto da gaiola que depois pilhou conscienciosamente, virando, para despejá-los, o bebedouro e o comedouro, e varrendo para o chão da varanda, à força de asas, patas e bico, tudo o que se derramara ou estava pousado no fundo da gaiola. O outro, olhando de banda, não se atrevia a um gesto; e o Papagaio Verde voltou para o meu ombro, sem querer tocar, para comê-lo, num grão do milho fino com que o outro se regalava.
Quando eu ia para a escola, acompanhando submissamente, até à última esquina de onde se via minha mãe de atalaia à janela, a criada que era mandada a comboiar-me para impedir que eu me perdesse nas ruas ou entre a garotada do meu bairro, e fugindo dela a correr, mal era voltada a esquina, para escapar-me ao perigo incalculável de os meus colegas perceberem que a criada me trazia (e esta convenção de fugir às respectivas criadas para negar-lhes a guarda era tácita entre muitos dos meninos, e as criadas, à hora da saída, ficavam conversando nas esquinas distantes, a coberto das pedradas com que seriam recebidas, se se aproximassem aquém dos limites convencionais da sua não-existência), o papagaio vinha até à porta do patamar, a despedir-se de mim, e o mesmo fazia quando, à tarde, depois de lanchar, eu saía para a lição daquele pescoço em que não via sinais de guilhotina. Estas despedidas eram uma perfídia minha, nas vezes em que não ia, como me pediam que fosse, deixá-lo preso. Divertia-me saber que se fechavam à espera que ele, caminhando solene pelo corredor e arrastando chiadamente no oleado a corrente, voltasse honestamente à gaiola, onde ficava, sem ser preso, aguardando o meu retorno.
Depois, meu pai regressava novamente. As luas-de-mel eram agora curtas, rápidas, tumultuosas, com minha mãe protestando lá dentro, em gritos que chamavam porco e infame ao meu pai. Às vezes, a frágil paz quebrava-se logo no jantar de família, nesse mesmo dia, com meu pai levantando-se pela mesa fora e atirando a cadeira, ou com minha mãe chorando diante da travessa encalhada na mesa, entre um prato cheio e outro vazio. Palavras viperinas circulavam, meus tios levantavam-se também, com uma autoridade moral de que compensavam a sujeição dos muitos auxílios e jantares que meu pai lhes dava. Eram, aliás, parentes por parte dele, embora pessoas cuja interferência, nos negócios domésticos, ia aumentando com a violência das disputas; muitas vezes, naqueles escassos quinze dias, uma das criadas, de noite, levantava-se para ir chamar meu tio, que não morava longe e vinha sonolento, com umas calças enfiadas por cima do pijama e um sobretudo de gola levantada, conversar pacientemente, ora com minha mãe que, em «robe de chambre» suspirava sentada na sala de jantar, ora com meu pai que, passeando pesadamente no corredor até que os vizinhos de baixo viessem protestar contra o barulho, proclamava que não precisava de nós para nada, tinha a bordo todos os confortos, que nos levasse o diabo.
Eu, na cama, ouvia tudo aquilo, quando não era expressamente convocado a participar, por minha mãe que vinha acordar-me «para fugirmos os dois», ou por meu pai que me sacudia para dizer-me «que minha mãe era doida, que o odiava, que me ensinava a ter-lhe ódio». Com sono, farto de cenas sem novidade alguma, cujas marcações e deixas eu sabia de cor, eu tinha ódio a ambos, por sob o medo imenso que ambos me metiam, a puxarem cada um por um braço meu, cada qual exigindo que eu desmentisse o outro. Uma vez, minha mãe vestiu-me apressadamente e vestiu-se depressa também, com meu pai, no corredor, de faca da cozinha em punho, e as criadas nas sombras da porta do «quarto escuro» espreitando. Fui informado de que íamos sair para nos deitarmos ao rio, nos afogarmos. À porta, entre gargalhadas do meu pai, eu recusei-me terminantemente a sair, declarando que estava muito frio. E meu pai, brandindo a faca—que era para suicidar-se, ou para matar minha mãe, ou para liquidar-me a mim, conforme as oportunidades daquela «commedia dell’arte»—avançou para minha mãe. Eu dei-lhe um pontapé no baixo-ventre, que o fez, num urro, largar a faca que apanhei. E as criadas e minha mãe tiveram de interpor-se entre ele e mim, até que uma das criadas, abrindo a porta da rua, se esgueirou, comigo pela mão, desarmando-me, e levando-me para a avenida, onde o dia clareava, e os grandes carros de bois, cobertos de hortaliça muito arrumadinha, desciam chiando a caminho do mercado. A criada falava docemente comigo, dizendo-me que o que eu fizera não se fazia, era uma grande maldade, uma grande falta de respeito. Eu, abaixando a boca, mordi-lhe a mão. E ficámos passeando para baixo e para cima, ela surpresa e dolorida atrás de mim, porque me estimava muito, e eu, à frente, dando pontapés aos detritos que havia no passeio, entornando caixotes de lixo, que estavam nas portas, e urinando contra as árvores como faziam os cães.
Daí em diante, nas questões nocturnas, quando meu tio vinha, no seu sobretudo escuro, negociar que minha mãe não teimasse em dormir na minha cama, de que eu arrepanhava a roupa, ou que meu pai não brandisse facas, acabavam sempre os três por discutir-me acaloradamente, a dois contra um, conforme os argumentos, como se eu, «que levantara a mão contra meu pai», fosse o criminoso, o culpado daquilo tudo. Eu, às vezes, saltava da cama, vinha encostar-me à ombreira da sala de jantar, e pela frincha via-os sentados à volta da mesa, cada qual argumentando com motivações que eu não sonhara ter tido, com malefícios que me não lembrava de ter praticado, ou combinando planos de educação para conterem os meus instintos. Eu ficava atemorizado e trémulo, ouvindo falar de colégios internos, de proibições de brincadeiras, de suspensão das lições de piano, coisas piores.
No dia seguinte, pela manhã, trôpego de sono e inquietação, eu ia para a escola, onde não era mais feliz. Afastados rispidamente da minha casa que não frequentavam, como eu não frequentava a deles, os meus colegas detestavam a minha incapacidade de comunicar, o meu isolamento estudioso e vago que não procurava aliados nem confidentes. Eu era menos rico do que a maioria deles, e vestia-me com um aprimoramento desmazelado que não mantinha a distância que os primores despertam, nem a camaradagem a que o desmazelo convida. E, bem mais vezes que a outros mais peraltas, me atacavam para sujar-me, ripostando eu com uma raiva que não era das regras do jogo, porque eu procurava ansiosamente agredir, com ímpetos assassinos.
À tarde, eu voltava para casa, fechava-me na sala, com o piano e o Papagaio Verde, até ao momento em que, estando meu pai, ele batia à porta. Tocava as músicas que preferia, ou ficava compondo repetidamente melodias que se pareciam com tudo o que eu ouvira de triste, e o Papagaio não pousava já nas costas da cadeira, mas na borda extrema do teclado, de onde seguia os movimentos das minhas mãos, e descia às vezes para as teclas, ensaiando uns passos que eu fazia sonoros no calcar das teclas descidas. Isto divertia-o, e ele simulava um grande espanto, olhando a um lado e outro, soltando «ohs, ohs», e ficando com um pé no ar, um pé hesitante que fingia temer o som da tecla seguinte. Então, eu retirava-o para a borda, e tocava estudos e escalas. O Papagaio dormitava desatento. De súbito, eu feria dois ou três acordes de algumas músicas suas predilectas. Imediatamente se arrepiava na expectativa, de olho arregalado, e cantava e dançava até ao fim, abrindo as asas. Quando eu concluía numa catadupa de acordes extras, os gritos dele eram de aplauso que exigia bis. Eu repetia uma e duas vezes, até que uma angústia de exprimir-me me embargava os dedos, eu pousava a cabeça nas teclas, e esperava que ele viesse, pé ante pé, catar-me na cabeça o piolhinho.
Não chegara ainda à adolescência, quando o Papagaio Verde adoeceu, a princípio muito levemente, de uma pequena boqueira no canto do bico, e que manifestamente o incomodava. Só a minha presença, a minha voz, os meus afagos, o arrancavam da sonolência gemente em que se confinava ao canto do poleiro. Pouco a pouco, a boqueira alastrou em refegos para os lados do bico, avançou em direcção à poupa azul e à fina pálpebra que se mantinha semicerrada. Mal podia abrir o bico, para comer; mal podia firmá-lo, para descer ou subir. Tinha tonturas, vagados que o aterrorizavam e surpreendiam, e acabaram por fazê-lo temer o poleiro de onde quase caía. Foi preciso ter sempre a gaiola no chão. Ele, que às vezes audazmente pulava para a grade da varanda e olhava de alto para o quintal lá em baixo, não se atrevia agora, senão de vez em quando, a aproximar-se, num relance saudoso, da beira da varanda. E, arrastando o pé, voltava para o canto da gaiola. Eu, e minha mãe também, a meu pedido, tratávamos dele, lavando-lhe com um algodão embebido em borato aquela chaga que não era bem chaga, e antes parecia um alastrar de lava pregueada e ressequida. O Papagaio Verde não deixava que minha mãe lhe fizesse o curativo, se eu não estivesse ao lado. Com paciência, falando-lhe carinhosamente, partindo tudo em pedacinhos, eu insistia para que ele comesse. Quase que para me agradar, ele acedia, num esforço infinito, em comer alguma coisa. Dava-lhe de beber, e a água escorria pelos cantos do bico. Foi então que, no meu colo, ele deu em recordar teimosamente, com escândalo de minha mãe que deixou de tratá-lo, o reportório antigo. Murmuradamente dizia de enfiada coisas que eu nunca lhe ouvira, frases, ordens de navegação e manobra, palavrões, palavras em línguas que eu não reconhecia. Como em sonhos, recostado nos meus braços, arrepiando-se às vezes, repetia sem descanso tudo o que decorara na sua longa vida, e o que não decorara, e o que ouvira no convés de navios, em portos de todo o mundo, entre a marinhagem de todas as cores. A sua verdura, agora tão esmaecida e pelada, tão rica, desdobrava-se em ondulações de vagas, em apitos de manobra, em pregões marinhos, em linguajares que tinham no seu som estalado a fúria e o tumulto dos trópicos multicores e a amplidão azul dos mares espumejantes. Era uma ardência mecânica que eu escutava debruçado sobre ele, e se ilustrava, na minha imaginação, de velhas gravuras com índios de penas na cabeça e grandes barcos ancorados em baías de água lisa e límpida em que se espelhavam. Mas era também uma confiança de que, em sacões abruptos, um dos seus pezinhos se apertava no meu dedo, como quem se agarra à vida e transmite a um amigo a derradeira mensagem. Isto durou semanas que me fizeram às vezes faltar às aulas, não ouvir ninguém, não notar ninguém, ocupado em escutar e receber aquela vida que se extinguia. Eu saía a correr da escola que não me dava conta de frequentar, temendo não encontrá-lo ainda vivo. Mas lá estava, agora meio deitado no canto da gaiola, para apertar na pata o meu dedo. O sofrimento dele devia ser horrível: tão grande que, apesar da docilidade com que deixava eu fazer-lhe o curativo inútil, suspendi aquelas lavagens que o torturavam mais. Não era, porém, só a ferida, se era ferida, o que lhe doía. Era-lhe igualmente dolorosa a perda do seu garbo, da sua altivez, da elegância majestosa das suas penas brilhantes. Quantas vezes, arrastando-se, ele tentava erguer-se nas pernas e nos músculos fracos, para, de cabeça ao alto, com o olho já afogado no mal que o roía, espanejar-se ainda, olhar-me com amistosa sobranceria, ensaiar um começo de cantiga. Logo recaía na dormência falante, em que arrepios ligeiros o percorriam para terminarem num aperto de pata no meu dedo. Eu levava-o para o pé do piano, acomodava-o em almofadas na cadeira, tocava-lhe as suas músicas. Ele agitava-se num contentamento longínquo, de quem já não ouvia bem e se despegava do mundo, e recostava na almofada a cabecita, no estertor roufenho que era a sua conversa solitária, onde palavras mal se distinguiam.
Um dia, quando, arquejante da rua e das escadas, cheguei à varanda, o Papagaio Verde estava inerte no canto da gaiola, com o bico pousado no chão. Peguei-lhe, aspergi-o com água, sacudi-o, com a mão auscultei-o longamente. Não morrera ainda. Levei-o para a sala, deitei-o nas almofadas, puxei a cadeira para junto do piano, e, enquanto com os dedos da mão esquerda lhe apertava a pata, toquei só com a direita a música de que ele gostava mais. As lágrimas embaciavam-me as teclas, não me deixavam ver distintamente. Senti que os dedos dele apertavam os meus. Ajoelhei-me junto da cadeira, debruçado sobre ele, e as unhas dele cravaram-se-me no dedo. Mexeu a cabeça, abriu para mim um olho espantado, resmoneou ciciadas algumas sílabas soltas. Depois, ficou imóvel, só com o peito alteando-se numa respiração irregular e funda. Então abriu descaidamente as asas e tentou voltar-se. Ajudei-o, e estendeu o bico para mim. Amparei-o pousado no braço da cadeira, onde as patas não tinham força de agarrar-se. Quis endireitar-se, não pôde, nem mesmo apoiado nas minhas mãos. Voltei a deitá-lo nas almofadas, apertou-me com força o dedo na sua pata, e disse numa voz clara e nítida, dos seus bons tempos de chamar os vendedores que passavam na rua:—Filhos da puta!—Eu afaguei-o suavemente, chorando, e senti que a pata esmorecia no meu dedo. Foi a primeira pessoa que eu vi morrer. Consegui que os vizinhos de baixo mo deixassem enterrar no extremo do quintal. Embrulhei-o num pano, procurei desesperadamente uma caixa que lhe servisse, atravessei pé ante pé a casa dos meus cerimoniosos vizinhos, desci ao quintal com a caixa debaixo do braço, escavei uma cova bem funda, depus a caixa, tapei-a, calcando a terra, e juntei-lhe em cima um montinho de pedras, com flores disfarçadamente surripiadas ao canteiro, entaladas entre elas. E, da varanda, em dias seguidos, eu contemplava aquela sepultura pequenina, adjacente à imensa empena do prédio contíguo, e que a cerimónia havida com os vizinhos não me permitia de cuidar. Vieram chuvas, veio o jardineiro, a sepultura desapareceu. Mas eu sabia, pelas manchas na empena sobranceira, onde ela estava, e adivinhava, sob o canteiro florido, o meu Papagaio Verde.
A minha solidão tornara-se total. Meu pai ia e vinha, sem que sequer a chegada das bagagens me incitasse a reconhecer-lhe a presença mítica. E, na bisonhice que eu cultivava contra tudo e todos, como na sobranceria com que me mostrava ostensivamente agoniado num regime doméstico que, de viagem para viagem, se azedava, havia como que uma herança espiritual de bicadas abruptas. Cheguei mesmo a torturar o Papagaio Cinzento.
Uma tarde, à mesa, estalou a discussão entre meu pai e minha mãe, precisamente num jantar de chegada, a que, como de costume, meus tios assistiam. Eu declarei categoricamente que os detestava a todos, e, atirando com a cadeira por imitação de violência, levantei-me para a varanda, perseguido por um bofetão de meu tio. Lutei contra ele que me agarrava, e contra meu pai que o agarrava a ele, e contra minha mãe que agarrava meu pai, e contra a minha tia que os agarrava a todos; e vendo, num relance enublado, aquele cacho humano a disputar-se a primazia de castigar-me, a voz embargou-se-me em gritos de choro desatado:—Ninguém é meu amigo, ninguém é meu amigo . . . Só o Papagaio Verde é meu amigo.
A luta suspendeu-se numa gargalhada alvar, que escorria babada pelos guardanapos deles. Eu fiquei de costas, buscando com os olhos, lá em baixo, no quintal, o recanto em que jazia o Papagaio. E ouvi distintamente a sua voz aguda e clara, dominadora e viril, sarcástica e displicente, raivosa e cheia de carácter, a proclamar, num grande voo de asas verdes, o juízo final que murmurara ao morrer. Não eram. Em verdade, não eram sequer isso, cujo sentido eu não sabia então claramente. A vida, desde então, não me esclareceu muito; mas creio firmemente que, se há anjos-da-guarda, o meu tem asas verdes, e sabe, para consolar-me nas horas mais amargas, os mais rudes palavrões dos sete mares.